O corrimão de ferro sobe em curva pela Calçada do Menino Jesus para a Rua dos Cegos, na freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, e faz um varandim perfeito sobre a Rua de São Tomé. De braços apoiados nele, Maria Lúcia Martins Realista, 65 anos, não perde pitada da ocasião: lá em baixo, é inaugurada a peça Calçada, um rosto da fadista Amália, criado pelo street artist Alexandre Farto/Vhils com a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa. A obra, em pedras brancas, pretas e castanhas, foi feita para dar capa ao disco Amália, as Vozes do Fado, que será lançado a 17 de Julho, uma encomenda da Universal francesa a Ruben Alves, o realizador de A Gaiola Dourada, que conseguiu juntar nesta homenagem fadistas como Camané, Ana Moura, Carminho, Gisela João, Ricardo Ribeiro e António Zambujo.
À cerimónia deste fim de tarde de quinta-feira, 2 de julho, veio o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e toda uma comitiva camarária, e também o realizador Ruben Alves, que chamou Vhils para integrar este tributo a Amália. “Como o fado é uma música urbana e como está a fazer eco na nova geração, lembrei-me da street art”, conta. Para Vhils, foi a primeira vez a trabalhar com pedras da calçada – e recorda a frase emblemática do Maio de 68, escrita nas paredes “sous les pavés, la plage” (sob a calçada, a praia), sinónimo de liberdade e momento fundamental para a street art; para os calceteiros de Lisboa, apontou Ruben Alves, enaltecendo o seu “trabalho titânico”, foi a primeira vez a erguer uma obra de calçada vertical.
Lúcia, que mora ali mesmo no número 12 e todas as vizinhas e vizinhos que, com ela, enchem o corrimão, confirmam a dificuldade do trabalho do mestre Jorge Duarte e da sua equipa, feito “de dia e de noite, às vezes até às duas ou quatro da manhã, aos domingos e aos feriados e até no dia de Santo António”, como conta Elisa Barreiras, prestes a fazer 84 anos, moradora “ali por trás, quase no Castelo”. É a eles que ali se debruçam, satisfeitos, que Ruben Alves chama os “guardiões” da fadista. “Espero que fiques bem aqui, por cima de Alfama e com vista para o Tejo”, deseja o realizador à sua “querida Amália”. Neste canto da Rua de São Tomé, onde Elisa Barreiros se lembra de já terem existido prédios, foi-se formando um largo que nunca recebeu batismo, mas talvez também isso mude em breve, já que a Junta de Freguesia quer passar a chamar-lhe Praça Amália Rodrigues.
Pedro Felix Rodrigues, nascido aqui há 76 anos, aprova a ideia, contente por ter ali o rosto da fadista. “Não havia de estar feliz? Mas quem é que não é fã de Amália?”, pergunta. Agora Ti Pedro só se preocupa em preservar a obra de Vhils. “Vamos ter que dar umas traulitadas aos putos que, de certeza, em pouco tempo, vão querer fazer disto uma rampa de skate”, promete. É ele quem, a pedido de Ruben Alves, lança agora água de um garrafão sobre o rosto de Amália. E explica, repetindo as palavras do realizador: “É para sobressair a imagem e para verem que, quando chover, Amália vai chorar pelas pedras da calçada abaixo.” Um verdadeiro fado.