Apresenta-se como um “não músico e aspirante a escritor”, mas tem sido precisamente nestas áreas que Kalaf Epalanga se tem afirmado como um dos mais irrequietos e inquietos artistas da nova lusofonia, surgida numa Lisboa miscigenada, que tem nos Buraka Som Sistema, grupo do qual foi fundador, o seu símbolo maior. Nascido há 37 anos em Benguela, o cronista, poeta e performer musical, mudou-se ainda adolescente para Portugal, onde no final dos anos 90 iniciou a sua “aventura poética” que o levou ao Centro Cultural de Belém. Teve “carta branca” para ocupar o Grande Auditório embalado pelos ritmos da sua Angola natal, num espetáculo inspirado no livro de crónicas O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço), definido pelo próprio como “uma declaração de amor a Lisboa”.
> Como era o Kalaf antes de chegar a Lisboa?
Era uma criança normal… Os meus pais eram funcionários públicos. a minha mãe trabalhava no Ministério do Trabalho e o meu pai começou por ser enfermeiro e mais tarde formou-se em medicina. Não tinham nada a ver com as artes, portanto, mas tenho um irmão mais velho, o Ricardo, que é pintor. É um daqueles génios que antes de começar a falar já desenhava muito bem… O facto de conviver com ele, que é dois anos mais velho do que eu, influenciou-me muito. Acho que se fizesse algo relacionado com as artes plásticas, por influência dele, possivelmente seria designer. Mas mais tarde acabei por encontrar as palavras e, depois, a música acabou por ser o meio que encontrei para vazar os meus poemas.
> Como foi a sua infância em Angola?
A normal, também, de quem cresceu em Angola nos anos 80. Havia a guerra que influenciou a vida de todo o angolano nesse período, mas isso não era algo eu sentisse de forma direta, porque a vida era assim mesmo… A guerra existia, estava omnipresente, mas não nos condicionava, muito pelo contrário, até aguçava a vontade de viver tudo muito intensamente, que é uma forma de estar ainda hoje muito preservada pelos angolanos. Somos um povo muito agarrado à alegria, à festa e acho que isso também se deve à guerra. Não nos podemos esquecer que, com a guerra colonial e, logo a seguir, a guerra civil, foram muitos anos seguidos de guerra. Angola nunca teve muito espaço para conviver com ela própria, havia sempre a sensação de que alguém, ou algo, podia chegar e roubar-nos a liberdade ou a vida… Isso acaba por moldar as pessoas, mesmos que estas se esforcem por não pensar muito no assunto.
> Quando é que teve a noção de que queria ser escritor?
Foi só depois de vir para Lisboa. No início a arte não ocupava assim tanto espaço na minha vida, pelo menos numa forma participativa, como mais tarde veio a acontecer. Sempre tive muito gosto pela leitura, porque os livros eram uma constante lá em casa, mas de uma forma perfeitamente normal. Lia Edgar Allan Poe, Eça de Queirós, muita literatura e poesia africana, de Manuel Rui, Pepetela ou Uanhenga Xitu. Mas também as aventuras de Tom Sawyer, não andei propriamente a ler a Ilíada em criança [risos].
> Qual a razão que o levou a mudar-se para Lisboa?
Cheguei aqui adolescente, em meados dos anos 90 e não tinha assim grandes expectativas nem desejos, para além de fazer aquilo que os meus pais mandavam [risos]… Foram eles que decidiram a minha vinda para cá, porque havia mais possibilidades para estudar. O objetivo era melhorar as notas, entrar para a universidade, tirar um curso e voltar para Angola.
> Veio estudar o quê?
Gestão, que sempre foi o meu sonho. Já em miúdo era eu que vendia os quadros do meu irmão. Ele pintava uns quadros do Bruce Lee que eu levava ao mercado e vendia em três tempos, para termos dinheiro para ir ao cinema ou comer um gelado. Sempre achei que o meu futuro podia passar por vender arte, até como forma de ajudar o meu irmão, e para isso tinha de estudar gestão, mas não tinha assim nenhum grande plano, para além de terminar o curso e regressar a Angola.
> O que acabou por não acontecer…
Acabei por desistir de tudo mal pus um pé em Lisboa [risos]. Essa coisa de chegar, com 17 anos, e viver sem os pais acabou por me transviar completamente dos meus objetivos. A primeira coisa que fiz foi tentar perceber onde é que as coisas estavam a acontecer. Nessa altura ainda era a geração Rapública [disco histórico que, em 1994, reuniu muitos artistas de hip-hop nacionais] que estava a ditar o pulsar da rua, pelo menos para a minha geração, com nomes como o General D ou o Boss AC. E quando me apercebi que tinha algum jeito para escrever, comecei a procurar um meio para usar essas palavras, que acabou por ser a música.
> Quando é que percebeu que tinha esse talento para as palavras?
Logo nesse instante, mal cheguei. E o que me levou a escrever foi discordar de muitas das coisas que então eram ditas. Havia muita gente a escrever sobre negros, mas eu tinha outra perspetiva sobre a negritude e comecei a pensar no que podia fazer em relação a isso. Em vez de estar a verbalizar essa minha discordância, decidi escrever sobre o meu ponto de vista. Ainda hoje carrego essa vontade de responder sempre a certas verdades que continuam a circular por aí. Ser africano não se encerra só numa ideia única. Há várias Áfricas e várias formas de ser africano. É diferente ser-se africano em África ou sê-lo na Europa. Enquanto vivi em Angola, por exemplo, não existia para mim a questão da raça. Isso foi algo que só me surgiu aqui, porque passei a ser uma minoria. Só quando és parte da minoria é que consegues refletir sobre essa realidade. E isso até me ajudou a olhar de outra forma para as minorias do meu pais, a ver como as pessoas lidam com a questão da identidade.
> Como é que a sua família reagiu a essa mudança de planos?
Toda a gente me dizia que a poesia não dava dinheiro e que os poetas morriam todos pobres. Portanto, ou voltava a estudar ou arranjava um modo de fazer funcionar a coisa. Como sempre fui muito teimoso, não aceitava esses argumentos. Sentia que realmente podia mudar qualquer coisa, se calhar é esse o espírito do escritor, e não desisti. Mas achei que o melhor era não começar logo pelos livros, e antes por um meio em que as pessoas consomem poesia sem se aperceberem, a música. Foi assim que comecei a escrever canções para outros.
> Para quem?
Inicialmente para os amigos que estavam à minha volta, algumas bandas rock no bairro onde vivia, em Almada. Vivia perto do Pragal, no bairro da Ramalha. Não é propriamente uma das áreas mais icónicas da margem sul e a não ser que sejas de lá, ninguém sabe onde fica a Ramalha [risos]. Rapidamente me apercebi de que não podia ficar por ali muito mais tempo e mal pude dei o salto para Lisboa. Mudei-me então para perto do castelo e pouco tempo depois transitei para o Bairro Alto, mas não dava para viver no Bairro Alto… Fiquei lá seis meses e depois fui viver para a Avenida da Liberdade, onde finalmente comecei a ganhar mais a noção do que poderia fazer.
> Que foi onde realmente tudo começou, certo?
Sim, nessa altura já era conhecido como um tipo com algum jeito para spoken word. Comecei a frequentar o Hot Club e a Discolecção, que na altura ficava no Centro Comercial Palladium. A minha vida praticamente passava-se entre esses dois locais e o Bairro Alto. Foi uma altura em que vivi intensamente essa coisa de criar a partir da memória. Comecei a colecionar discos de vinil e a moldar a minha estética, não só sonora, mas também física. Estava lado a lado com pessoas como o Zé da Guiné e a conviver com pessoal como o Johnny e o Rui Murka, da editora Nylon. Cruzei-me com os pioneiros do movimento drum and bass em Portugal, da Cooltrain Crew… Foi um período muito bonito da minha vida, de grande descoberta.
> E quando é que conhece os seus futuros companheiros dos Buraka Som Sistema?
A Nylon propôs-me na altura fazer um disco de spoken word e foi quando conheci o João Barbosa e o Riot [dos Buraka], que ainda estavam a gatinhar na produção. ?O disco acabou por não ir para a frente, mas acabei por manter o contacto com eles. Entretanto, o João foi estudar engenharia de som para Madrid e eu, que já era um apaixonado pela cidade, por causa de museus como o Rainha Sofia e o Prado, acabei por me aproximar mais dele. Começámos a falar muito sobre música e a refletir sobre os nossos objetivos.Foi durante uma dessas conversas, entre Madrid e Barcelona, a caminho do festival Sonar, que decidimos avançar com a Enchufada, a nossa editora. Na altura a Nylon já tinha falido e começaram a surgir novas editoras como a Loop, do Rui Miguel Abreu, e nós, que estávamos fartos de ouvir dizer que a nossa música era muito esquisita, decidimos avançar também… Editámos um primeiro disco em 2003, o 1 Uik Project, que foi também o meu primeiro álbum. Seguiu-se mais um, com o Type, e enquanto continuava a dar os meus espetáculos, tropeçámos em Buraka, ou pelo menos na ideia de Buraka. Fizemos aquela experiência no [Bar] Mercado e era para ser só uma noite, mas a explosão foi de tal ordem que acabou por mudar para sempre todos os nossos planos.
> Mas no início nem sequer se assumia como membro da banda…
É verdade, fiquei ali no meio, indeciso, a pensar se embarcava na aventura ou continuava a fazer o meu spoken word. Estive na fundação, é certo, mas raramente aparecia, porque o plano inicial era fazer um projeto mais direcionado para produtores. A ideia de banda só surgiu mais tarde e a possibilidade de viajar e andar na estrada muito intensamente é que me fez pensar de maneira diferente. Deixei um pouco de lado a cena da spoken word para continuar esse percurso nos Buraka Som Sistema, com os meus amigos e companheiros. E foi maravilhoso, não me arrependo rigorosamente nada dessa decisão.
> É também nessa altura que começa a escrever para o Público…
Foi logo após a morte do Eduardo Prado Coelho, que me convidaram para ser cronista. Foi fantástico, porque tinha os Buraka para me completar enquanto performer e o jornal para dar vazão às minhas ideias e conceitos mais estranhos, sobre o que é viver em Lisboa e sobre a minha posição de angolano na Europa. Por incrível que pareça, a reação foi superpositiva. ?E quando me vi nesse papel, aí sim, pensei que talvez o meu lugar fossem os livros. Estava tranquilo, sem pressas em atingir esse objetivo, mas senti que contar histórias num formato mais alargado, com mais complexidade, seria o meu caminho. Ao fim de um ano, tinha o Zeferino Coelho, editor do José Saramago [na Caminho], a dizer-me que gostava muito da minha escrita e a convidar-me para publicar as minhas crónicas. Imagine-se só o susto que levei quando atendi o telefone [risos]. Para mim, ele era alguém que vivia no Olimpo! Entretanto, o primeiro livro correu bem, mas não estava ainda tão afinado, como agora este segundo.
> Livro esse que deu muito que falar, a começar logo pelo título, O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço)…
Esse título foi completamente propositado. Não nego que seja provocatório, mas é-o porque gosto de uma boa risada. O humor é algo de muito importante porque nos humaniza e traz de volta à terra. Estava a haver um grande exagero à volta dessa questão, a um nível quase a roçar o absurdo. Afinal de contas o que é importante? A vida de um por cento da população? De um por cento de angolanos que têm capacidade de investir e de um por cento de portugueses que podem vender? Penso que há coisas muito mais interessantes a acontecer entre os restantes 99 por cento…
> Mas concorda que é um título que pode levar ao engano…
Claro que sim. Mal comparado, é como aquelas atrizes que usam uma imagem sexy para ser embaixadoras da ONU e chamar a atenção para o que realmente importa. Eu consigo ter um título desses e não ser acusado de irresponsável, porque o que me preocupa são outras questões. Quem está nesse meio dos negócios, só pode rir ao olhar para este título, até porque há vários níveis de leitura para essa questão… Para começar, vários dos angolanos que estão a comprar são de origem portuguesa. Depois, eles foram convidados a comprar. Quando as empresas portuguesas foram para Angola, também foram para fazer negócio a sério. E se seguirmos o dinheiro, ele está a ir para lugares que nada têm a ver com Angola ou Portugal. Acho que existem muitos equívocos à volta desta questão, mas é sem dúvida um assunto interessante, que dá bons ensaios e discussões. E a mim dá-me bons títulos [risos], porque o que me interessa é aprofundar o outro lado.
> Como é que a sua carreira artística é vista em Angola?
Não faço ideia, mas também não sei bem como sou visto cá [risos]. A minha preocupação é continuar a fazer o que faço e não perder muito tempo a tentar compreender como estou a ser entendido. Preocupa-me, sim, é se é ou não necessário fazer o que faço. E neste momento sinto que é, porque não temos muitos angolanos a escrever. Somos uma nação com muitas necessidades, inclusive ao nível cultural. Precisamos de ser muitos mais a escrever e a publicar em Portugal. E eu quero dar o exemplo, mostrar que é possível…