E foram precisos quase dez anos para que o filme Até Amanhã, Camaradas, de Manuel Tiago, chegasse aos cinemas, aproveitando a boleia do centenário de Álvaro Cunhal (que usou aquele pseudónimo até desfazer o tabu da autoria, em 1994). A data da estreia é oportuna, mas perdeu-se, sim, e muito, pela demora. A série da SIC foi rodada e pensada de origem para ser filme, e isso é óbvio no extremo cuidado com a fotografia, a iluminação, nas sequências de grupo, na reconstituição histórica, na direcção dos atores, na fantástica banda sonora de Luís Cília… Tal não aconteceu até agora, por razões mais ou menos obscuras, que se prenderão, suspeita-se, com falta de interesse, de orçamento (ou de ambos). Certo é que este é o melhor filme de Joaquim Leitão, que se tem perdido por registos mais ou menos apatetados (e ainda nem estreou o filme baseado no livro de Margarida Rebelo Pinto…). Além de que os atores (130) têm grandes oportunidades de desempenhos, talvez os melhores das suas carreiras em cinema. Aliás, há uma extrema fluência e coerência que atravessa todo o filme, no seu ritmo, nos seus ambientes, na forma como tudo se expõe e desenrola, como os atores interagem, numa comunhão rara no cinema português (por vezes, os atores conseguem dizer mais com os olhares do que com as palavras…). E se este era um livro difícil de adaptar! Não que o romance não seja extremamente visual (Cunhal dá imensas pistas muito cinematográficas), mas trata-se do próprio tema, que se escapa às regras típicas do neorrealismo: foca-se não na denúncia das vidas deploráveis dos trabalhadores na década de 40 (a época das grandes fomes, das grandes explorações da miséria e das grandes greves e repressões do fascismo, também), mas antes na dura rotina dos clandestinos, funcionários do PCP, “revolucionários profissionais” (nas palavras de Lenine), e suas reuniões conspirativas, umas atrás das outras, as cisões, as discussões, as regras estritas (“calma, cuidado e pontualidade”), as distribuições da imprensa clandestina, as discordâncias internas acerca das praças de jorna, as funções das mulheres nas casas de apoio, e também o tédio, o desconforto e a solidão destas vidas. Mas pedalar sempre. E depois há a feroz perseguição, as prisões, os interrogatórios, a tortura. No filme, o realizador retira a cena em que ele próprio comparece no sórdido papel de médico, conivência com a PVDE, mas conserva o “caminho das azenhas”, a paisagem que de que Cunhal tanto especificou a Joaquim Leitão, enquanto preparavam o filme. Mantém-se também uma exemplarmente bem conseguida, tão sugestiva quanto cruel, cena de tortura (com Marco D’Almeida), em que ele resiste pensando na mulher, quando esta está numa pensão com outro camarada, o Ramos (Paulo Pires) – o tal que profere a fatídica despedida, Até Amanhã,Camaradas…
Até Amanhã, Camaradas
De Joaquim Leitão. Até Amanhã, Camaradas, com Gonçalo Waddington, Leonor Seixas, Marco D’ Almeida, Carla Chambel, Paulo Pires, Cândido Ferreira, Ivo Ferreira, Adriano Luz e São José Correia. Drama. 180 min. Portugal. 2005