O escritor galardoado com o prémio Eduardo Lourenço 2011 carrega Moçambique na certidão de nascimento, entranhado nos romances, estranhado nas opiniões. O seu último livro, A Confissão da Leoa, ganhou os favores de público e crítica, teimando em não abandonar os tops de vendas. À VISÃO, em Agosto de 2012, falou de infâncias: a sua e a do seu país
Certa vez, escreveu assim: “Nasci e cresci numa pequena cidade colonial num mundo que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo.” Hoje, Antonio Emílio Leite Couto, 57 anos, rebaptizado Mia pelo afeto que, em criança, tinha aos gatos, nascido na Beira, Moçambique, é um refazedor de mundos: territórios perdidos, universos paralelos, metáforas geográficas carregadas de política, magia e humanidade, Jesusaléns. Poeta acima de tudo, presente em perto de duas dezenas de romances e livros de contos abensonhados: pela linguagem original que inventou (imagem de marca de que se quer libertar) e pela doçura desprendida mesmo nos mais terríveis cenários (consolo dos que sobreviveram a guerras sem racharem ao meio). Militante político, jornalista por uma década, biólogo (trabalha numa empresa de estudos de impacto ambiental por si fundada), autor e cronista traduzido, respeitado, premiado, fala sobre a infância e sobre Moçambique serão uma e a mesma coisa? Filho de portugueses, fez recentemente uma volta a Portugal, alimentada pelo sucesso do mais recente romance A Confissão da Leoa, relato baseado numa história verdadeira que demorou anos a digerir, sobre ataques de leões a aldeões numa perdida região moçambicana. O país revelou-se uma outra aldeia, de leitores dedicados à ficção e às opiniões de Mia Couto: momentos de “uma costura a dois”, define.
A relação com os leitores é uma “costura” cosida ao longo de 20 livros. Como a descreve?
Tenho dificuldade em pensar sequer que já fiz livros. O desafio, e tenho certa habilidade para fazer isso, é pensar que o último é sempre o primeiro. Porque sou inseguro, mantenho uma timidez. Tenho uma atitude de estreia a cada livro. Não há a ideia de carreira, até porque me esqueço dela. É como se fosse sempre o mesmo livro, como a cauda de um vestido de noiva que se prolonga até não vermos o fim.
Em A Confissão da Leoa, descreve aquela região de Moçambique como “aldeia que tem braços grandes”. Também é boa metáfora para Portugal?
Sim, os lugares pequenos querem ter braços longos, abraçar o mundo. Por outro lado, também nos querem abraçar a nós e não nos deixar sair. Transportamos o nosso lugar de origem para todo o sítio, irremediavelmente.
Foi recebido efusivamente em Portugal, como num largo dessa aldeia. Sente mais as ligações familiares ao País?
Ter família é condição essencial para ser feliz. Mas ter demasiadamente uma família é algo de que temos que nos libertar. Tem que haver um laço que se corta, mas que nos deixa estar na rede familiar, protetora… É uma raiz que tem que se casar com uma asa, fazer-nos voar. A relação que tenho com Portugal é um bocadinho esta: nasceu dentro de mim nas vozes dos meus pais, que foram jovens para Moçambique, onde tiveram os três filhos.
O que reencontra nestas “voltas” literárias?
Tive o privilégio de fazer muitas coisas porque parei em cada terra, e, a certa altura, pareceu-me que era sempre a mesma. Mas o que me comoveu muito, por exemplo, foram os pães. Diziam-me: “Ah, não sai daqui sem levar um pão-de-ló”, “um doce típico”, “um vinho…” Como é que, num país tão pequeno, isso ainda resiste? Cada lugar tem um pão, um sabor, uma ligação de afeto. Há uma constelação de identidades felizes.
Que ideia fazia do País, à distância da infância, e que realidade encontrou em adulto?
Vim menino, devia ter quatro ou cinco anos. Recordo-me que visitei a aldeia da minha mãe, em Trás-os-Montes. Quando cheguei de carro, vi as luzes distribuindo-se pela encosta. E porque sempre tinha vivido entre extensas planícies onde parece que não há mais mundo para além do horizonte, só tinha uma maneira de ver aquela paisagem em declive. Pensei: “Aquilo é cheio de arranha-céus porque as luzes estendem-se até lá acima.” No dia seguinte, percebi que tinha sido enganado. Lembro-me também que a minha família era muito beijoqueira. Como eu era muito menino, passava de mão em mão. Parecia um pão. Também recordo aquela coisa generosa do “não comeste nada!”. Essa tradução do afeto pela comida que se dá, que nunca consegui perceber bem. Depois da independência, em 1976/77, os meus pais voltaram e foram, e voltaram, e ficaram naquele vaivém… Perderam o mundo daqui e o mundo de lá. A primeira vez que os vim ver, adulto, ainda não existiam os [meus] livros, tive uma impressão [do País] que não tenho agora: uma coisa melancólica, cinzenta, uma espécie de claustro. Sentia-me constrangido, faltava-me luz, sol, extensão…
Apesar da efervescência do pós-25 de abril?
Eu não estava nas cidades. Fui ao Porto, e a Armamar, perto da Régua: ali é tudo granito, as casas são pequeninas. A chave da minha mãe, coisa com trinta centímetros, não havia bolso para a guardar… Uma outra vez, voltei para fugir da guerra, das prisões e das notícias. Lembro-me que cheguei e disse à minha mulher: “O silêncio da aldeia é fantástico, vamos dormir como não o fazemos há muitos meses.” Acabei de dizer aquilo e começámos a ouvir tiros, explosões. Eram as festas, com foguetes que nos perseguiram o tempo todo, e que nos causaram um alvoroço que as pessoas não percebiam. Para nós, era um reviver de momentos dramáticos.
Agora, andou por Lisboa, Porto, Faro, Alentejo, Algarve, Norte, Beira Alta… Como encontrou o País?
Das várias vezes que tenho vindo a Portugal sempre me falam da crise. Mas agora as pessoas incorporaram esse sentimento como se a crise fosse uma casa e já estivessem a morar nela, o que me perturbou. Há um olhar melancólico, que herdei, de quem está aqui empurrado contra o oceano e tem de fazer opções impossíveis: se é terra, se é mar… Mas havia também um gosto de subverter essa melancolia com a pequena graça, a piada, as anedotas, o riso. Não o vejo, agora, tão presente.
Gonçalo M. Tavares disse que a pobreza entrou de tal maneira no léxico quotidiano, que assim não há liberdade, nem espaço para criar. Concorda com essa visão?
Não sei. Apetece-me dizer que Moçambique e Portugal, que nunca foi um país rico, fizeram todos os seus momentos de esperança em condições de pobreza. O fascismo criou pobreza a vários níveis, até o da esperança. Mas as coisas geram o seu contrário. Moçambique teve uma festa com a independência, estávamos todos no cais à espera que tudo começasse. E quando acabou a guerra, estávamos entre os dez países mais pobres do mundo. Mas foi um momento feliz: havia muita gente a escrever, a criar canções… Há qualquer coisa que não pode ser reduzida a essa outra pobreza que sai no jornal.
Como vê o discurso sobre os países emergentes? Com sabor a acerto de contas?
A maneira como aferimos os que são emergentes ou em declínio, é em função de um sistema que tem de ser repensado. O mundo mudou tão rapidamente que os centros passaram a ser periferias. Portugal sempre foi uma periferia, mas era um centro nosso. E estes portugueses que partem agora para África já não partem de centro nenhum, nem sequer europeu. Moçambique começou a perceber que o principal capital vem da China, da Índia, do Brasil, da África do Sul. Isso é um sinal de mobilidade num mundo que pensávamos ser mais fácil de entender. A ideia de que a crise é apocalíptica, crise de valores globais, é um sentimento europeu. A Europa não gere bem isto: como deixou de ser o centro do mundo, o mundo deixou de existir. Há uma reaprendizagem que nos fará bem a todos.
Esteve ligado à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique, guerrilha anticolonial). Face à nova realidade, está pacificado?
Valeu a pena. Estou pacificado, mas não resignado em relação ao que não correu bem. Tem de ser feito o balanço por quem viveu os dois momentos. Eu vivi-os, e sei que é tudo incomparável quando olho à minha volta e recordo como era, há 30 e tal anos, quando eu aderi a uma causa.
Era muito novo. O que o fez aderir à causa?
Não era meu mérito. Vivia numa cidade em que ninguém tinha que fazer-nos catequese política. A situação colonial, a discriminação racial, eram tão presentes… Bastava ter em casa uma formação de valores democráticos, burgueses, humanistas, e entrava-se em choque com essa realidade. É preciso dizer, ainda, que não havia um racismo diferente do dos ingleses ou franceses: há um único racismo, que pode, depois, manifestar-se numa condição histórica diversa. Nos dias de Carnaval, os meninos da minha idade iam para os subúrbios com paus e correntes, para bater nos negros. Eu tinha 15 anos. O meu pai, saído de Portugal para Moçambique por razões políticas, nunca nos fez um grande discurso normativo sobre o que tínhamos de ser, mas ia-nos mostrando coisas. Atrás da nossa casa ficava uma administração, e nós ouvíamos as pessoas a serem chicoteadas. Quando fui para Lourenço Marques [hoje Maputo], pensei que estava noutro país: a Beira era mais violenta, mas tinha níveis de mestiçagem imensos. A África que queriam expulsar, estava sempre ali, uma teimosia. Mas em 1971/72, sem nada escrito sobre apartheid, havia nos autocarros, atrás, um banco corrido onde os negros se sentavam…
A ida para a Frelimo foi um gesto seu, ou foi abordado?
Quando saí para ir estudar, matriculei-me em Medicina, mas já sabia que ia juntar-me à Frelimo. Queria ser psiquiatra, havia uma ideia de curar o mundo. Mas nunca estudei realmente durante os dois anos de faculdade. Recordo-me que quando, finalmente, me ofereci para ser membro da Frelimo e me deram uma situação clandestina, eu era o único moço branco, e o único jovem. Havia um crivo estrito, uma comissão que avaliava as candidaturas. Lembro-me que estavam umas 15 ou 20 pessoas, numa casa escura, e cada uma tinha que contar a sua história, “a narração do sofrimento”. Aqueles que me antecederam, pessoas com a idade que tenho hoje, tinham sofrimentos a contar. Eu era de uma raça e classe privilegiadas… Não sabia o que dizer. Confessei: “Sofro porque vejo sofrimento à minha volta.” Havia a transposição da coisa cristã: o sofrimento como elemento de identificação, como passaporte para ter crédito, para passar por aquela porta.
Sofreu aí discriminações por ser branco?
Era discriminado no sentido positivo, algo que ainda hoje se manifesta. Quando chego a algum lugar, em primeiro lugar sou um branco: tenho poder, sou investido de uma carga histórica… As pessoas aceitam se eu lhes passar à frente, o que é uma coisa terrível. Não devia acontecer. Houve um caso ou outro em que sofri discriminação, coisas pequenas, não me queixo. Não fui caso único, houve outros brancos a juntarem-se à Frelimo… Ou entravam nas tropas portuguesas ou fugiam. Eu fugi para a guerrilha. Mas os brancos que estavam na guerrilha não podiam pegar em armas. Havia uma linha mais racista que dizia: “Não podemos ter tanta confiança neles, porque quando se confrontarem com um português, pode ser um primo ou um irmão…” Havia outras teses, como a que me venderam a mim: se alguém tirasse fotos, ou houvesse espionagem, a presença de brancos confirmava a ideia de que a guerrilha era comandada por russos ou cubanos.
O dedicar-se ao jornalismo foi o juntar das pontas soltas?
Eu fui mandado infiltrar. Aceitei a missão, com sentido ético. Foram momentos felizes que não se repetem, há essa ideia empolgante de que vamos mudar o mundo. Há colegas que olham para trás e estão azedos, amargurados, acham que houve traições. Eu sou grato. Por outro lado, achávamos que o mundo era mais simples: que bastava querer para que acontecesse. Não foi assim. Mas o balanço é positivo. Hoje, vejo gente com mais dignidade, mais vestida do ponto de vista da alma. Compare-se quem andava na escola e com quem se podiam discutir os assuntos, quantos moçambicanos estavam preparados para ter um negócio, mesmo que pequeno… Houve um percurso que não pode ser descurado.
Hoje, parecem extremar-se duas realidades: uma, de sobrevivência, a outra feita pelas elites consumistas. É uma visão correta?
No fundo, é uma espécie de ameaça de uma globalização, palavra que odeio. Banalizou-se, tal como a biodiversidade na minha área, e já não quer dizer nada. Mas esta tentativa de homogeneizar um universo feito de diversidade… Por exemplo, vejo nas aldeias mais remotas de Moçambique que subsiste um terror, silencioso e silenciado, de que vai chegar lá a sociedade industrial e devorar tudo como um leão. As pessoas têm vontade de ter telemóvel, e outros sinais de modernidade, mas por outro lado, têm necessidade de esgrimir contra isso com o que é mais antigo e ancestral.
E que imagem tem das elites?
É parecido. São elites dependentes do exterior, das verdadeiras elites que continuam sem rosto e sem nome a comandar o mundo. São ávidas de grandes vaidades e pequenos poderes, gente que procura a ostentação porque quer mostrar que está acima. Um poder totalitário porque não há contemplação com a divisão de poder. Que oposição temos em Moçambique? É tão frágil esta ideia… A oposição tem de nascer dentro, ou não há. Temos embriões da sociedade civil. São forças que vão criar aquilo que chamamos democracia, e que não é coisa nenhuma a não ser o exercício para se ter democracia. Tudo isso está nascendo: a opinião pública, os órgãos de informação, os outros poderes, o confronto…
Os escritores africanos são reféns de ideias de fora? A sua invenção de linguagem enquadra-se aí?
Agora, e felizmente, há escritores africanos que se estão a libertar dessa imposição de parecerem africanos. Eles estão a escrever o que querem. Nos últimos três ou quatro livros meus, estou a tentar libertar-me… Não me apetece que me fechem numa ideia de escritor previsível. A escrita tem de ser surpreendente, instigar-me. Mantenho é esse caminho de chegar à prosa por via da poesia, e a relação com a oralidade.
Sempre escreveu nos seus famosos livrinhos de notas?
Sim, sempre. Aprendi muito com o jornalismo: uma certa economia sempre presente, o pensar no outro que nos vai ler. De alguma maneira, a literatura tem de matar esse mestre. Não tive dificuldade de o fazer. Se calhar, já era um mau jornalista. Adorava distanciar-me da notícia, “cronicando” [título da recolha de crónicas, de 1998]. Escrevi nos livros desde pequenino. Só fazia poesia. O meu pai deu-me uns cadernos, onde eu tinha apontamentos, com uma letra de quem tem preocupação de ter letra bonita: coisas sem valor, angústias, namoradas que não conseguia ter, a dificuldade de sair de mim mesmo… Tudo isso era ficcionado.
Esteve dois anos em medicina, depois veio a biologia, “uma transição natural”. Porquê?
A biologia dedicada aos animais era a minha grande paixão. Tenho cinco cães, uma segunda casa onde viviam vários mamíferos à solta… Gosto de todos os animais, de hienas, por exemplo. Isto nasceu na minha infância: íamos ao Parque da Gorongosa, na Beira, e sentia sempre que não éramos nós que íamos lá visitar. O visitado era eu. Era um momento de reencantamento. Uma paisagem infinita, onde ouvia vozes que não estavam lá. Sou muito feliz, porque agora regressei: trabalho ali nos lugares onde me extasiava. A infância entra-me pela porta adentro a todo o momento.