O que sabemos sobre a Coreia do Norte, dinastia de líderes sorridentes, país pobre e obediente a uma ditadura que parece eterna, vizinho conflituoso? Muito pouco. Por estas paragens, as cortinas parecem feitas de ferro ou de outros materiais opacos, e o turismo não é uma indústria florescente. José Luís Peixoto decidiu, um dia, ir à Coreia do Norte. Assim. Através de uma agência de Pequim, o escritor inscreveu-se na Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour (Ultimate Option), pagando o bilhete do seu bolso, indo por sua conta e risco. A viagem, duas semanas em abril último – uma exceção nas parcas autorizações concedidas pelo Governo sul-coreano a iniciativas do género -, fê-lo percorrer lugares como Pyongyang, Yanggak, Kaesong (junto ao Paralelo 38, na fronteira com a Coreia do Sul) e a Zona Desmilitarizada, Nampo, Sariwon (onde visitou o Museu das Atrocidades Americanas), Hamhung, Pujon, Wonsan, o monte Myohyang… À maneira de “uma longa crónica”, como define Dentro do Segredo (Quetzal, 238 págs.), este seu primeiro volume dedicado à literatura de viagem, a visita é descrita com as emoções – incluindo o cansaço, a perplexidade, o medo, e até as ideias feitas.
Material não faltou: o escritor visitou os monumentos grandiosos, erigidos para a glória dos líderes e as aldeias pobres com uma agricultura velha de décadas; entrou em fábricas (como a siderurgia Chollima) e em estádios imaculados; deambulou na Livraria de Línguas Estrangeiras, onde “a grande maioria dos livros à venda eram as obras completas de Kim Il-sung e de Kim Jong-il traduzidas em vários idiomas”, acompanhadas de outros volumes imortais como As Lendas de Pyongyang, O Povo da Aldeia Lutadora (novela “escrita pelo diretor do subcomité de prosa do Comité Central do Sindicato de Escritores da Coreia”). José Luís Peixoto comprará República Popular Democrática da Coreia, um Paraíso na Terra para o Povo – que “apesar de não estar na secção de ficção literária, me pareceu que poderia ser lido com esses olhos”, conta. E, claro, testemunhou as celebrações do centenário do nascimento do governante entretanto desaparecido: “Como se não estivesse morto, Kim-Il sung fazia anos.”
Esta é uma espécie de Magical Mystery Tour beetleana, mais negra, acompanhada por omnipresentes guias: a menina Kim e o senhor Kim, sempre solenes ou sempre sorridentes, a “estimularem uma alegria de plástico”, mas sempre avisando que não se podia tirar fotografias (o escritor português fintou a proibição). O telemóvel, esse fora deixado num saco de plástico e devolvido ao dono apenas no fim da viagem. À maneira de Bruce Chatwin, José Luís Peixoto também perguntará: o que faço eu aqui? Abre os olhos, observa, escreve: está vivo.
Como surgiu esta decisão de ir à Coreia do Norte?
Surgiu de uma confluência de oportunidades. Há pouco tempo, comecei a fazer escrita de viagens, colaborando com a revista Volta ao Mundo; as viagens tornaram-se uma constante na minha vida atual, o que acaba por ter um papel importante no meu quotidiano, no que penso e naquilo a que presto atenção; há a vontade de novos desafios… Sempre escrevi rente a mim próprio e ao que me é característico e próximo, como o Alentejo. A partir de certa altura, e porque a escrita tem de conter metas que envolvam uma superação, fez-me sentido eleger um tema distante do que me é mais natural. Tive uma epifania: ir mesmo à Coreia do Norte, uma ideia que eu já tinha, e escrever sobre isso. O facto de escrever crónicas para a VISÃO há algum tempo, também contribuiu para a decisão.
De que maneira?
Porque Dentro do Segredo é uma longa crónica. O livro pretende dar uma perspetiva pessoal e altamente subjetiva da experiência de uma visita à Coreia do Norte, um destino tão complexo que pode ser abordado de múltiplas perspetivas. Esta é a minha.
Refere ter um fascínio por estas sociedades fechadas. Isso pode ligar-se ao isolamento do seu Alentejo?
Diria que as sociedades fechadas estimulam a minha curiosidade. Essa atração pode ter a ver com uma questão geracional. A experiência de ausência que define a minha geração, nascida à volta de 1974, é a de não ter vivido a ditadura e as experiências extremas do ponto de vista histórico. Uma ausência que eu sinto muito, porque me foi lembrada em muitas ocasiões.
Escreve, aqui, duas vezes: “Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras.” Porquê esta declaração?
É uma espécie de desculpa, que achei que devia colocar. Não quero deixar dúvidas nenhumas nesse aspeto. A minha atração [pela Coreia do Norte] não é apologética. Até considero que, tanto quanto possível, tentei que o meu olhar fosse isento desses preconceitos. Embora me pareça, e refiro-o no livro, que é muito difícil que os preconceitos não entrem na escrita. Porque aquilo que nos é dito, quando estamos no país, é absurdo. Só com uma grande fé se pode acreditar.
Como fez o balanço entre o medo e o ridículo associados à realidade do país?
A interpretação do que se encontra num país como a Coreia do Norte é sempre pessoal. Há alguma literatura, com fontes das mais diversas, mas também existe algo forte: a experiência de estar lá, de olhar as pessoas nos ohos, de as ver no seu ambiente. Isso toca. Acredito que muitas das interpretações que escrevo no livro não estejam corretas. Mas assumo essa falta com total compreensão perante mim próprio. Não me penalizo por ela. Porque podem ser incorretas, mas são verdadeiramente o reflexo daquilo em que acreditei. Muitas vezes, a realidade apresenta-se como ficção – elaborada, com detalhes, por vezes hiperbólica, exagerada… Esse é o resultado a que se chegou naquele país. Acredito que foram, ali, reunidas condições históricas muitíssimo específicas, difíceis de replicar em qualquer outra parte do planeta ou da história.
Levou, escondido, na bagagem, D. Quixote de la Mancha, de Cervantes. Um romance sobre um personagem que mistura a demanda alucinada e a realidade, foi o companheiro ideal para esta viagem?
Exatamente. Quando se fala da Coreia do Norte, refere-se muitas vezes 1984, escrito por George Orwell, o que é muitíssimo pertinente. Mas como previa, o D. Quixote acabou por ser uma companhia interessante e uma obra com uma ligação grande [ao país]. As viagens são sinónimo de uma certa solidão; aliás, como o próprio processo da escrita. Mas como esta viagem teve restrições importantes de comunicação, a solidão foi mais agravada. Eu ouvia coisas que eram absurdas, e que começaram a revoltar-me: eram a justificação dada para um sofrimento profundo que me parecia testemunhar, em muitos momentos, e que não faz sentido que ainda exista no mundo.
Qual foi o momento mais marcante desta viagem?
Na segunda parte da viagem, comecei a ficar mais cansado de estar lá. No livro, há até um capítulo em que deixo de dizer os nomes dos líderes [substituindo-os por espaços vazios] porque já não tinha paciência. Mas houve vários momentos marcantes, como quando estivemos fora de Pyongyang, em lugares onde os coreanos não tinham sido visitados por nenhum estrangeiro desde a guerra civil entre as Coreias. Nunca me tinha acontecido em nenhum lugar do mundo: havia muitas pessoas que, quando nos viam ao longe, fugiam e iam esconder-se atrás de arbustos ou nas bermas da estrada, e ficavam a espreitar-nos.
Sentiu-se um bárbaro na Ásia, como escreveu Henri Michaux?
De alguma forma, sim. Chamam muitas vezes reino eremita à Coreia do Norte. É um bom termo. Este é um país onde as pessoas constroem uma série de ficções sobre a realidade exterior. Impressionou-me testemunhar a força desse isolamento, como quando fomos rodeados por crianças vestidas com roupas de adulto ou sujas, em Homhung, um lugar onde caía neve e fazia frio, e que se riam descontroladamente só por sermos estrangeiros. Mas também houve o oposto, a celebração do aniversário do Kim Il-sung. No dia, a guia demonstrou alguma confiança em nós e deixou-nos assistir, sem ninguém por perto, a um fogo de artifício em Pyongyang. Senti um alívio muito grande por estar na escuridão total e não repararem em mim.
“Durante aqueles minutos, fui norte-coreano”, descreve. Um escritor em trânsito permanente é sempre, por definição, um autor de literatura de viagem?
Completamente. No fim do livro, escrevo que é fácil e confortável comparar a vida a uma viagem [“Um bom viajante não tem planos fixos nem intenção de chegar. As palavras de Lao-Tsé. É tão fácil comparar a vida a uma viagem. Faz tanto sentido. Viagem ou vida, chegamos sempre aqui”]. Essa frase tem sentido em relação à própria vida. Mas se o viajante não faz planos de chegar, é um facto que ele está constantemente a chegar a algum lado. Nessa medida, toda a literatura é literatura de viagens. Eu nunca tinha escrito um livro em tão pouco tempo como aconteceu com Dentro do Segredo. É muito interessante fazê-lo, percebendo o que era importante dizer sobre o que vivi, e havendo um restrito número de possibilidades. Ao mesmo tempo, esta é uma forma de escrita com uma postura documental, o que lhe dá força. No livro, menciono o documento que assinei, dizendo que não ia escrever sobre a Coreia do Norte. Felizmente, conseguiu-se avançar para lá desse documento. Nem que seja de forma burocrática, ter um papel a dizer que Dentro do Segredo se tratava de ficção era tirar-lhe uma força que é a mais vital deste texto: a de saber que cada uma das palavras nasce da própria experiência.
Aqui e ali, expressa esta ideia: “Das mil coisas que pensei, não aconteceu nenhuma.” Tinha medos que não aconteceram?
Sim. Há um momento no livro em que conto que, depois de fazer um telefonema [para os filhos, em Portugal, que não sabiam que o pai estava na Coreia do Norte] e de enviar um postal, contactaram-me para o quarto do hotel, pedindo-me para ir ao local do envio. Pensei em todo o tipo de coisas: se poderiam chamar-me à atenção por alguma coisa, ou pedirem-me contas, pois as histórias que se ouviam eram assustadoras. Quando cheguei, a senhora só queria perguntar-me se um casaco, lá esquecido, era meu.