Enquanto o mundo lá fora convulsionava-se na maior reviravolta da parte ocidental do planeta, lá dentro, na corte em Versailles, discute-se moda, fofocas, bordados, namoricos e outras intrigas românticas. Enquanto, o povo famélico penava com miséria e impostos desapiedados, a aristocracia de peruca empoada, sapatinhos de fivela e sinal maquilhado nas faces pendentes sujeitam-se a contratempos, como os ratos mortos que vão aparecendo no lago onde navega uma gôndola e um falso veneziano. Benoit Jacquot veterano cineasta francês, com 40 anos de carreira e outros tantos de obras (apenas dois exibidas em Portugal) realizou, há 12 anos Sade, passado igualmente no século XVIII e onde a guilhotina também se suspende sobre a cabeça do imoral marquês… Em Adeus, Minha Rainha, filme que abriu a 62ª edição do Festival de Berlim, também há uma pendência, pescoços incautos (muitos) e uma guilhotina híper-activa. Começa justamente a 14 de Julho, com a tomada da infame Bastilha, mas em Versalhes ainda ninguém suspeita, tudo decorre como se o mundo não estivesse preste a desabar. E é sabido que o povo não queria só pão – queria poder. E sangue. Na corte, a única contrariedade são as picadas de mosquitos que deixam num estado lastimável os braços das donzelas. E o ambiente down stairs /up stairs está muito bem dado. Os acontecimentos são vistos da perspetiva dos bastidores do palácio, da multidão de serviçais do palácio – que habitam espaços lúgubres, algo gordurentos – em particular, da dama de companhia cuja única função é ler para a rainha. Aos poucos, os rumorejos começam a ampliar-se, a populaça está a aproximar-se (embora não apareça), os primeiros ratos começam a abandonar o luxuoso navio que é o opulento palácio. Os tais que apareciam apodrecidos a boiar, quando ali se vivia ausente da turbulência parisiense, e da igualdade, fraternidade e liberdade que se apregoava. O realizador (também co-argumentista) assiste a tudo isto através da leitora tão servil quanto apaixonada (Léa Seydoux), e de uma fidelidade canina pela sua rainha – Maria Antonieta (a atriz alemã Diane Kruger, que há tempos víramos no papel de espia em Sacanas sem Lei, de Tarantino) quer fugir, desesperada com a evacuação sorrateira da corte, as traições, a separação da amante, mas Luís XVI toma a decisão mais digna de ficar. O casting está perfeito, a reconstituição de época também, tal como os figurinos e a iluminação. Benôit tem o bom senso de não nos mostrar aquilo que já sabemos, o antes e o depois, mas fixa-se num triângulo amoroso lésbico muito estereotipado que não acrescenta grande coisa, nem à história da França e da Europa em geral, e muito menos à da cinematografia.
ADEUS, MINHA RAINHA: Paz, pão, povo e decapitação
A angústia de Maria Antonieta antes do cadafalso. E folhos, borbulhas, gôndolas, intrigas amorosas, uma relógio, ratos mortos e outras irrelevâncias
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