Não deixa de ser irónico que se tenha celebrizado como boss o dono de uma das vozes da música popular norte-americana que mais identificam com a classe média de honestos trabalhadores ou desempregados órfãos do velho sonho americano. É um “patrão” de calças de ganga e t-shirt que, mesmo quando se dirige a milhões de fãs em todo o mundo, parece estar falando com o vizinho que chega a casa depois de um dia de trabalho e tira uma cerveja do frigorífico, numa pequena cidade de New Jersey.
Foi a esse microcosmos onde nasceu, em setembro de 1949, às portas de Nova Iorque, que Bruce voltou, em meados dos anos 90 do século passado, depois de perceber que talvez não tivesse sido boa ideia tentar vestir a pele de estrela milionária e distante,a residir num casarão de Beverly Hills, na Califórnia. Foi mais do que um simples regresso a casa. A partir daí, a sua música passou a sintonizar-se diretamente com os sucessos e insucessos, alegrias e dores, da sua América – no sentido literal e no mais simbólico. Em 2002, The Rising surgiu como uma resposta clara e assumida aos ataques do 11 de Setembro de 2001, a mensagem da esperança possível – e para o gravar Springsteen voltou a juntar a sua E Street Band, que tinha fundado em 1972 e desfeito em 1989. Em 2008, mais otimista, Springsteen tocou Working on a Dream, na campanha presidencial de Barack Obama – e seria esse o nome, entre “trabalho” e “sonho”, do seu disco lançado no início de 2009. E esta narrativa americana continuou, já em março deste ano, com Wrecking Ball (o nome das gigantescas e pesadas bolas oscilantes usadas nas demolições de edifícios), crónica destes tempos duros, abordagem sem fugas a uma encruzilhada que questiona os limites e contradições do capitalismo made in USA, a partir de todos os que se sentem cada vez mais excluídos. Foi um disco escrito em menos de duas semanas, com sentido de urgência, depois de pôr de lado o material novo em que andou a trabalhar durante cerca de um ano. Aos 62 anos, considerado um dos mais influentes (e, certamente, mais ricos…) artistas americanos, é este Bruce Springsteen, a assumir mais do que nunca um estatuto de working class hero, que vamos ver na noite do domingo, 3 de junho, no Parque da Belavista – bem diferente daquele Springsteen que, em 1993, tocou no Estádio de Alvalade no que foi, até agora, o seu único concerto em Portugal.
Sempre as mesmas cabeças
Este patrão vê-se como porta-voz de uma longa cadeia histórica de injustiçados, acreditando que as lutas que vemos hoje nas ruas são ecos, mesmo reproduções, de intemporais conflitos entre os mais poderosos e os mais fracos. Num número de março deste ano, a edição norte-americana da revista Rolling Stone publicou uma entrevista bem reveladora sobre quem é, hoje, Bruce Springsteen. Tiveram o talento de escolher o entrevistador certo: um fã que nasceu, também, em New Jersey, 13 anos depois do seu ídolo e que cresceu a ouvir as suas canções. Jon Stewart, esse admirador, recebeu o Boss no estúdio onde, há anos apresenta o The Daily Show. Questionado sobre a sonoridade tradicional irlandesa que se ouve em alguns momentos do novo disco (“Como se tivesse ido beber uma cerveja com os Chieftains”, diz Stewart), Bruce Springsteen responde com a necessidade de usar a música para dar “um contexto histórico” às suas canções: “Death to my Hometown soa como uma velha canção rebelde irlandesa, mas é basicamente sobre o que aconteceu aqui, há quatro anos; quero dar às pessoas o sentido de que isto é algo que se repete, uma e outra vez… É um ciclo histórico, e repetitivo, que agora aterrou, como sempre, sobre as mesmas cabeças…”
Mais à frente, tenta sintetizar a sua missão artística: “Na minha música – se é que tem um objetivo além de pôr as pessoas a dançar, a divertirem-se, a aspirarem as casas ouvindo-a… – tento sempre medir a distância entre a realidade americana e o sonho americano.” O músico fala da atual crise, também por experiência própria, ecoando dias passados que não esquece: “Escrevo sobre isto há 30 anos, porque eu vivi esta história quando era criança, testemunhei-a a cada dia, e vi os seus efeitos. Senti o que acontece quando a figura paterna luta para encontrar trabalho sem conseguir, e a mulher da casa se torna a única a alimentar a família. Vi a crise que isso gera, uma perda do sentido de masculinidade. Esta era a minha casa.”
Não surpreende, por tudo isso, ouvir este patrão a defender o movimento Occupy Wall Street (“Durante a maior parte a minha vida, assistiu-se a um grande aumento das desigualdades”, explica) ou a apoiar, como num recente concerto em Sevilha, da Wrecking Ball Tour que agora chega a Portugal, o movimento dos indignados 15-M – “Para as gentes do Sul que estão a passar mal. Demasiadas pessoas perderam os seus trabalhos e casas. O nosso coração está convosco”, disse, em espanhol, antes de atacar Jack of all Trades, do novo álbum. É precisamente nessa canção, sobre alguém que vai sobrevivendo como pode, entre biscates, que resume o contexto atual com palavras que parecem saídas das velhas músicas de intervenção do GAC Vozes na Luta: “O banqueiro engorda, o trabalhador emagrece. Isto já aconteceu antes, e vai acontecer mais vezes…”
A grande família
Mas basta ouvir Wrecking Ball com atenção para perceber que não falta ali material para criar momentos empolgantes em palco. É Springsteen clássico, no seu melhor, sem perder o sentido da festa, mesmo quando os tempos que canta são sombrios. É fácil de imaginar a eficácia, ao vivo, do início de We Take Care of Our Own, do arranque a meio de Wrecking Ball ou da intemporal Land of Hope and Dreams, em crescendo.
Os fãs, e são muitos, que sempre acompanharam de perto a carreira da E Street Band vão invevitavelmente sentir a falta do grande cúmplice de Springsteen na banda: o carismático saxofonista negro Clarence Clemons, que morreu em junho de 2011, quando, vindo de Los Angeles onde tinha colaborado com Lady Gaga, se preparava para gravar as suas partes deste disco. A tecnologia ainda permitiu incluir no disco (precisamente em Land of Hope and Dreams) o som do seu saxofone, registado numa atuação ao vivo, em que tinha tocado esse tema.
Em Sevilha – como, provavelmente, acontecerá também em Lisboa – a homenagem chegou quando, na letra de Tenth Avenue Freeze-Out, se ouvem as palavras big man e a imagem de Clemons ocupa, por momentos, os ecrãs. Buce Springsteen gosta de falar na sua E Street Band como uma grande família. E, por momentos, dá-nos a ilusão de que fazemos parte dela, e de que está a cantar só para nós, seus vizinhos em New Jersey.