Rasante porque nos tange a todos! A alguns, àqueles mais fragilizados, mais vulneráveis, atinge; a outros, quem sabe se mais robustecidos ou apenas por mero fruto de um acaso, porventura, rasa…
O filme é poderosíssimo! As imagens, num tempo lento e dilatado, acompanhadas musicalmente pela abertura de Tristão e Isolda de Wagner, que também parece estar lentificada, como que emergem do ecrã, envolvendo-nos, obrigando-nos a parar no tempo do filme, da imagem, do espaço visual, do espaço mental. E aparecem as primeiras imagens dos planetas, lindíssimas…e a presença de qualquer coisa de catástrofe que nos deixa em tensão…
Num prado de relva, as árvores estão meticulosamente podadas e cuidadas, sem uma folha fora do sítio. Impera a ordem e a ascese. O homem, anda parado; a noiva, acorrentada, tenta, em vão, correr; a mãe, com o filho ao colo, tropeça nos seus próprios passos numa relva, que mais pântano que relva, a atola e impede; o cavalo, um puro sangue preto de uma beleza livre para correr o mundo, é castrado na sua potência; a criança, olha-nos enquanto lapida com um canivete a ponta de uma cana, transformando-a numa lança. Neste prado aberto para o mar sentimo-nos, paradoxalmente, fechados, sufocados, presos a uma inquietação, a uma estranheza, próxima daquela estranheza familiar de quem conhece aquilo que pode conhecer do inconsciente.
O filme começa. Alívio! Um par de noivos bem dispostos numa cena cómica. Uma limousine branca tenta fazer uma curva difícil. Todos tentam. E conseguem! Nem todos os caminhos são a direito!
Vencida esta dificuldade, chegamos à festa. O encontro entre as duas irmãs é brutal, Claire e Justine (alusão ao Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel?). Trocam-se olhares. Uns intensos, penetrantes, outros, fugazes, desviantes. São os primeiros contornos da fragilidade narcísica, vestida de cores diferentes. Numa predomina a ordem e o arrumo, na outra reina a desordem e a criatividade. Verso e reverso. Uma e a mesmíssima coisa.
A apresentação dos pais confirma esta fragilidade. A mãe, rígida e de uma frieza afectiva é incapaz de oferecer qualquer tipo de afecto construtivo, deixando quem vive consigo, desamparado. O pai, apesar de mais próximo e lábil, parece um homem frágil, confuso e um pouco debilitado, pelo que também pouco capaz de dar segurança às filhas. Estas, entregues a si próprias, têm-se uma à outra e desenvolvem uma relação intensa. Amam-se. Odeiam-se.
Claire, talvez a mais velha, aparenta uma certa estrutura, uma hipótese de contenção das disfuncionalidades da família. No entanto, toda ela é nervos. Cheira a ansiedade. Sentimo-la como pólvora prestes a explodir. Encontra algum suporte no marido, um homem factual e concreto, embora se denuncie pela forma como não tolera as idiossincrasias da família da mulher.
Justine, a noiva, a tia “Quebra Aço”…enigma.
A narrativa gira à volta do casamento e do estado de alma de Justine. Numa tentativa de a todos agradar, tenta sorrir, fingir. Mulher madura, satisfeita com o dia, com o casamento, com o seu noivo, vai-se transformando numa personagem periclitante. No noivo e na sua própria criatividade, encontra alguma força. A presença dos familiares, as tensões e as reminiscências que transportam, são no entanto, excessivas. Entram em acção aspectos defensivos, alguns, até em certa medida, saudáveis. Evade-se para a companhia do sobrinho e do cavalo, nas quais encontra conforto, pois são relações mais fáceis, mais próximas do pulsional, do afecto. Recolhe-se no banho de imersão, no meio intra-uterino contentor das angústias primitivas e pré verbais…Procura ajuda em ambos os pais. Ausência! A mãe, na sua atroz franqueza comunica-lhe que assustados todos vivemos, deixando-a ainda mais só. O pai, apesar de a envolver corporalmente, demite-se da palavra e, mais uma vez, deixa-a ainda mais só, entregue a si e só a si.
Entristece-se. Mecanicamente, sexualmente, funciona. Afectivamente, retira-se, desampara-se dos outros, deixando-os também desamparados. O noivo, homem tranquilo, atento a si e aos outros, percebe que com este mal estar interno pouco ou nada pode fazer e…afasta-se.
Adormece num sono profundo, depressivo, melancólico, catatónico. E nós sentimos também o peso deste sono e…o planeta aproxima-se. Está cada vez mais próximo, cada vez mais próximo…
Surge a boa nova. O planeta é-nos apresentado pelos olhos da criança, do sobrinho. A sensibilidade de Lars Von Trier é aqui magistral. Mostra-nos como a linguagem das crianças (para além dos poetas) se encontra próxima dos afectos e como uma criança se defende de viver num mundo intranquilo, retirando-se para a área da ilusão, área transitiva. Nesta, encontra uma acalmia que lhe permite organizar e estruturar o seu interior.
Assim, o sobrinho, ao pressentir o mal estar nos seus pais e de quem depende para a sua estruturação e amadurecimento afectivo, procura na enciclopédia, na sua gramática, um nome que nomeie o que está a sentir, esta vivência presente em todos e que não sabe ainda o que é. Descobre então o planeta “Melancholia”. E não só o nomeia como instrumentaliza ao criar um engenho que mede a sua proximidade e distância. Finalmente pode projectar no exterior este mal estar interno por todos experimentado, não só o materializando, como também arranjando uma forma de o controlar.
Através desta operacionalização, os pais começam a consciencializar a presença deste inconsciente estranho e melancólico. Para Justine, a tia “Quebra Aço”, o planeta nada lhe traz de novo. É a visita de um velho amigo, da sombra melancólica que a ensombra, paralisa. Para os pais, uma presença aterrorizadora e mortificante.
E toda a narrativa se desenrola a partir daí. Com poucas palavras mas repleta de imagens, este planeta vai-se adentrando, interiorizando e, contaminando tudo e todos. “Até a respiração refreia com a sua chegada!”, comenta uma das personagens. O pequeno assusta-se. A tia, essa não! Sabedora deste estado de alma, não se aflige. Entra com ele na gruta mágica, na área da ilusão, de modo a sair da aflição e dar espaço a outra sensação. Mas triste, sempre triste, sempre muito triste. O sobrinho, de olhos fechados, aguarda. A mãe desesperada, chora…De novo Tristão e Isolda…o impossível…Cada vez menos esperança…e o planeta adentra-se, adentra-se e, connosco…permanece!
THE HELP – AS SERVIÇAIS de Tate Taylor
América dos anos 50. Estado do Mississippi. Abolida a escravatura embora a segregação racial seja mantida. Os negros, explorados e destinados a trabalhos menores, são considerados cidadãos de 2ª: os homens, essencialmente operários; as mulheres empregadas domésticas, “criadas”, “helpers”.
Curiosamente, estas “helpers” vivem num estado perto de “helplessness” à mercê do objecto empregador, as jovens e imaturas des-tratantes, vis e egoístas, donas de casa. Irónicamente, na incapacidade de desempenharem o seu papel de mãe, utilizam aquelas que desconsideram, as criadas negras, como objecto de apoio para as substituir! Como que parecem dotadas de um 6º sentido para se aperceberem das suas fragilidades enquanto objecto cuidador maternal e do seu registo de vida sobrevivente, numa sociedade que se alimenta essencialmente do material, do visível e do supérfluo e na qual os afectos são renegados e colocados a um nível inferior.
Por seu lado, as negras, mulheres amadurecidas pela dureza da vida mas sem perder a alegria, envolvência e autenticidade, estabelecem relações afectivas com as crianças, calorosas e autênticas. E são elas que lhes oferecem uma experiência de amor continuada e sustentada, a qual lhes permite crescer com confiança e auto-estima, com um bom sentimento de si: “You was beautifull, you was smart, you was inteligent”, sabendo de antemão, que quando a criança não é bem amada pela mãe: “it’s a long way to run in terms of solitude!”
O filme narra a história de uma serviçal negra, nos seus 50 anos, triste e abatida pela morte acidental do filho de 24 anos num acidente de trabalho na construção civil e ao qual foi negado o tratamento no hospital estatal. De uma interioridade densa e profunda e com uma capacidade narrativa superior, vai falando de si, do seu mundo interior, apesar das condições externas da sua vida tomarem grandes proporções. Desinteressada, a desinvestir de si, prossegue a sua vida mecanicamente e, o seu único alento, é tomar conta de uma pequenina branca de 3 anos, com a qual entra numa área transitiva de ilusão, de amor e de prazer que a preenche e propulsiona para a frente.
Contudo, o assassinato de um jovem negro reaviva a tristeza pela morte do filho. O retorno ao seu interior põe-na a pensar na pobreza das relações afectivas que escuta das vidas destas jovens e imaturas mães histérico-narcísicas, onde o atributo e acessório parecem dominar e em que filantrôpicas e hipócritas, criam bailes de beneficiência para crianças africanas, esquecendo-se do des-tratamento que infligem nas mães destas mesmas crianças africanas.
Entretanto, uma destas jovens brancas, vinda de estudar de Nova Yorque e com pretensões a jornalista, é mais sensível a estes aspectos da segregação racial. Ela própria, cuidada por uma criada negra pela qual sente uma grande gratidão por todo o amor e carinho que recebeu desta ama, fica descorçoada quando chega da Universidade e percebe que a mãe a despediu por motivos de ascensão social pessoais.
Zangada e revoltada, mostra à mãe como esta foi capaz de provocar a morte da velha ama pelo desgosto que lhe infligiu, pelo desrespeito e falta de sensibilidade por alguém que tão bem tratou da sua única filha. De forma a homenagear, pretende então alterar a gramática destes costumes, dando-lhes uma voz através da escrita. Procura as criadas negras e pede-lhes que estas lhe contem as suas estórias…Luther King, começa por esta altura os seus discursos. Nas casas do Mississippi, a maioria dos brancos desliga a televisão para não os ouvir. E os negros assustam-se com a hipótese de mudança!
Paralelamente, o filme conta a vida de outra serviçal negra, que após ter sido despedida de uma casa de brancos, só encontra trabalho em casa de uma outra mulher branca por esta última pertencer a um outro tipo de protótipo de mulher, mais erotizada, mas também mais madura e capaz de entrar em verdadeira relação afectiva. A relação patronal que se estabelece entre as duas é de uma intensidade e profundidade surpreendente, quase que Bergmaniana, e deveras enternecedora. E esta relação acaba por ampliar e dar força às outras narrativas, constituindo-se assim uma consciência de grupo capaz de alterar mundos.
Unidas, partilham as suas estórias com a jovem jornalista que, com o acrescento do deu próprio testemunho “branco”, consegue que estas sejam editadas num livro. É o sucesso! Com ele, a ameaça da retaliação.
A narrativa prossegue, assim como a emoção. Ficamos presos a estas estórias contadoras da história de um povo, segregado, maltratado e…faz ainda tão pouco tempo…
É notável como o filme evoca que a esperança activa, a luta daquilo que verdadeiramente acreditamos se alcança pela capacidade de dar, dar de si e, perdoar. Que é através do perdão, fundado num sentimento, não de resignação, mas de amor, que somos capazes de genuinamente mudar.
E perantes tamanhas estórias, saímos pequenos, pequeninos…