Quando, em 2007, Gonçalo Tocha, subiu por duas vezes ao palco, durante a sessão de encerramento da 4ª edição do IndieLisboa, para receber o prémio de Melhor Longa-Metragem Portuguesa e Melhor Fotografia, o realizador, que ainda nem assim se considerava (licenciado em Letras, pós-graduado em Língua Cultura Portuguesa), garantiu que Balaou era “o último filme que fazia”. Ficou surpreso, não esperava “de todo” ganhar, ter sido selecionado para o Indie era, já de si, uma conquista, “mais do que um filme aquilo foi um aspeto muito particular da minha vida”. Acabou considerado pela Variety um dos melhores filmes europeus não estreados nos EUA. Aqueles 90 minutos de vagas, vento, cabos, adriças e ganchetas e mar, mar, mar, e de exorcismo de memórias íntimas (“uma viagem para aceitar o esquecimento das coisas”) tinha-o “enchido de tal modo” que não acreditava que alguma vez conseguisse voltar a esvaziar-se. Mas depois houve uma “espécie de chamamento”, diz. E aqui está ele, novamente, aos 32 anos, com É Na Terra, Não É Na Lua. Desta vez, o dobro dos minutos (180) e para tão pouca terra, tanto mar, tanto mar. Um rochedo 6 por 4km, estreiteza de chão na largueza do oceano, que é evasão e, ao mesmo tempo, reclusão e muralha para as 440 pessoas que habitam a remota e mínima ilha do Corvo: “Açores são loucos, o Corvo ainda é mais louco”, diz-se no documentário. Há cinco anos que um filme português não estava presente na Competição Internacional do DocLisboa, que nesta edição, entre as 170 exibições, apresenta 57 obras nas várias secções competitivas, 14 das quais primeiras obras. Para Gonçalo, este acaba por ser o “percurso natural deste filme”, que já teve uma menção do júri em Locarno e estará presente também no Festival do Chile e em Copenhaga.
Aliás, quatro meses depois daquela declaração de não reincidência, já estava de novo a bordo, como se fosse uma emergência. Sem réperage nenhuma, “parti à descoberta como um explorador”. Afinal esvaziado, sem preparações vastas nem informações prévias. Apenas com um operador de som e o acaso enquanto assistente de realização, como diria Agnès Varda. Ele diz: “Segui o instinto de filmagem. O filme era o primeiro olhar, a própria descoberta”. E logo ao início a câmara de Gonçalo, ainda no seu vacilar de embarcadiça, filma terra à vista, rodeia-a, retarda o desembarque, faz-lhe manobras de aproximações à costa, como um felino se acerca da presa, a buscar o melhor ângulo. E nos primeiros minutos (que são muitos, costuma dizer-se longos) a voz off, desta vez no plural, em forma de diálogo naturalista com o operador de som, declara a nota de intenções do filme. Querem filmar cada rocha, cada casa, cada canto, cada rua, cada carro, cada vaca , cada pessoa, cada cão… da ilha do Corvo. E talvez ao espetador isto transmita algum temor, mas as más notícias primeiro e a verdade é que fazem isto mesmo. “O Corvo é dos poucos sítios onde conseguimos estar em todo o sítio ao mesmo tempo”.
Lá ficou seis meses, distribuídos por três vezes, ao longo de dois anos, também ele recluso e aconchegado naquela ilha que é concha protetora e prisão, porque “tudo o que prende, também acolhe”. Sobretudo ele ficou “preso” a esta ambivalência, “é a ambiguidade e o contraste de mundos, tão díspares a escassos metros de distância, que torna o Corvo um lugar único e fascinante”. E aquela ilusão “de que podemos filmar tudo”, deixou-o, também ele, recluso, fixado nesta estranha e obsessiva forma de filmar “até à exaustão, há um apelo muito grande de não perder nada”. A máxima era: “Tudo filmar, tudo é importante”.
E assim guiou-os o acaso, como as ondas, errância de ir e vir, pelos campos, pelas ruas, pelas escarpas, pela cratera do vulcão. Pelas casas das pessoas, pelas memórias do velho vigia que ainda sonha com baleias. Pela senhora dos queijos, “os queijos são como bebés, só que não choram”. Pela senhora que tricota um gorro tipicamente corvino a Gonçalo, e este real fio de lã azul acaba por tornar-se o fio condutor do filme, dividido em muitos capítulos, que se organizam espacialmente, “no sentido da progressão real da nossa vivência da ilha. Cada vez mais dentro, cada vez mais longe”. Um fio de Ariadne, que se torna, às tantas, trama de Penélope, porque cedo percebemos que o filme não terminará antes de tricotado o gorro, com uma borla no topo. Por isso, prosseguimos nesta terra, planeta exíguo de Principezinho, quase sem árvores e com um ponto de 718 metros onde ser pode ver a ilha toda em volta. E seguimos, a pé, ou de trator, ou de carro, a determo-nos nuns cavalos de crinas ao vento, nuns lodos e texturas pantanosas das ribeiras secas. Nas fúrias que às vezes dá nas águas quando chove, nas ondas que espancam o cais com uma inclemência de assombro e que deixam os corvinos mais isolados do que já estão. Porque eles sobrevivem por encomenda, e “os eletrodomésticos chegam amassados e os alimentos fora de prazo”, denuncia a candidata da CDU, que amanha o poster da campanha no meio dos santos da sua sala. E Gonçalo filma-lhes o lixo, filma-lhe os desalentos, os karaokes, os ensejos de eremitismo, os partos das vacas, os ensaios da banda filarmónica, os lábios rumorujantes de preces nas missas, o discurso do candidato do PPM, a força política mais votada na ilha, os peixes pescados de boca esbugalhada (quando morrem os peixes esbugalham a boca e não os olhos). Até lhes filma as nuvens, e forma como o vento dá no mar. “Do micro-cosmos se chega ao cosmos”. E filma-lhe as memórias desta ilha com Alzheimer, expropriada de registos escritos. E portanto tudo o que não aconteceu pode, um dia, ser verdade.
Faroleiros de bairro
E se É Na Terra, Não É Na Lua pode ter qualquer coisa de encantatório (pelo menos, só encarando-as assim nos poderemos render às suas três horas de exibição), A Nossa Forma de Vida, de Pedro Filipe Marques, 35 anos, primeira longa, presente na Competição Nacional, é um filme absolutamente encantador e único. Curiosamente, também ele fala reclusões voluntárias, de um micro-cosmos ainda mais íntimo e mínimo que a Ilha do Corvo, que é uma casa, mas de onde também se pode partir para um cosmos nacional (embora o país esteja mais em estado de caos). Também é uma história de velhos vigias, não de baleias, pronto, mas de alguns tubarões que se avistam ao largo. E também este filme tem pouco chão, mas tanto mar, tanto mar. Durante três anos Pedro filmou um casal octogenário, o sr Armando e a dona Maria, com 60 anos de convivência e cumplicidade conjugal. Eles vivem no oitavo andar numa torre azul, na foz do Douro, no Porto. Lá onde só passam gaivotas e aviões, e se avista tanto mar. Esta é a sua torre de controle, eles são faroleiros do mundo, veem-no através dos vários ecrãs da casa: as janelas, a televisão, os jornais… Quase nunca se vê o que eles veem, os espetadores olham pelos seus olhos, pelas suas perplexidades, comentários e ironias. O drogado lá de baixo que anda à cata no lixo, as off-shores, os discursos de Carvalho da Silva, a novela brasileira, a crise, os crimes dos jornais, os desvarios de um rockeiro, o roteiro de filmes em exibição, o foguetório numa noite festiva, “e se calhar neste momento está alguém a morrer sem assistência médica”…
Quando o realizador apresentou o seu projeto de filmar um velho casal, integralmente dentro de uma casa, sem exteriores, poucos acreditaram, conta, que não se tornasse em algo claustrofóbico, pesado, maçador. E, afinal, nada disso: nem se imagina a quantidade de mundo e de humor que emana daquele oitavo andar. Exemplarmente filmado, Pedro Filipe, estudante de Medicina, como os pais, durante dez anos montador (porque achou que era “a melhor maneira de aprender a realizar”), dedica-se agora a projetos de teatro e cinema, e não foi por acaso que conseguiu esta proximidade, quase à National Geographic, com os seus protagonistas. Quem ler os créditos finais percebe que são os seus avós maternos. O mais difícil foi passar de neto a fantasma com uma câmara invisível, que lhes invadia o quotidiano. “É muito delicado filmar a intimidade, sobretudo numa altura em que se vende a privacidade em reality shows. Por outro lado, não queria explorar a minha relação familiar, não queria fazer um filme do tipo diário, daqueles em que depois se revela um segredo ou um trauma de família. Queria fazer um filme sobre o presente, sobre os espetadores, no fundo”. E dar a conhecer duas “personagens antropológicas através do que elas estão a ver”. E através deles, o estado do país, “este sentimento muito português de estar sempre frente ao mar, mas sempre no mesmo sítio, imóvel como aquele prédio”. Eles recebem a informação do exterior e a processam-na de forma admiravelmente humorística e salutar. O sr. Armando nunca está para ninguém, é mesmo o eremita do farol, faz versinhos, dedica-se a pequenas bricolages e lê os jornais de uma linha a outra. “O meu avô praticamente não se dá com ninguém, porque sente que a sua vida assim é plenamente satisfatória”. A dona Maria, tem mais raízes com o mundo lá de baixo, traz notícias e abastecimentos. E em tão pouco espaço tanto mundo e tanta mais verdade naqueles diálogos e naquela relação do que em todo o cinema-verité junto. E tanta híper-consciência destes “comentadores da realidade” que pode nascer do fechamento. Maria trauteia o fado que está a dar na RTP Memória que “é muito português mas muito irónico ao mesmo tempo”: “Por muito que me custe não me hás-de ver chorar”. Armando vaticina: “Vai levar tempo, porque quem vota são as freiras, os padres, os analfabetos, e os drogados… Esses já nem votam. O cartão caiu-lhes noutro buraco que não o da urna”.