A ficção inspira-se na realidade, mas tantas vezes a realidade ultrapassa ficção. Já se sabe, acontecem-nos coisas que, se fossem contadas num filme, ninguém acreditava. Noutras até parece que entramos pela tela adentro, tal Rosa Púrpura do Cairo, e, quando a coisa começa a dar para o torto, exclamamos: “Tirem-me deste filme”. Nós não entramos com essa facilidade em E o Tempo Passa, de Alberto Seixas Santos, mas as personagens, ou pelo menos a personagem principal, Teresa, interpretada por Sofia Aparício, tentam sair. Como um jogo de espelhos, uma matrioska ou uma casca de cebola, o filme desfaz-se em camadas, uma delas parte para fora do ecrã, numa identificação entre a atriz e a personagem. Não é nada que nunca tenha sido feito. Um exemplo maior e recente é Wrestler (2009), de Daniel Aranofsky, em que a vida de Mickey Rourke se confunde com a personagem que interpreta. Aqui temos Sofia Aparício a fazer de uma modelo que quer ser atriz. Só que, claro está, Sofia Aparício não é Mickey Rourke.
O casting faz sentido devido a essa confusão da persona com a personagem, dando-lhe um nível a mais, para além da propositada e crescente indefinição, entre ficção e realidade, expressa na história que se conta na tela, cujo paradigma maior talvez seja a personagem de Américo Silva, que, aparentemente, não distingue a história da novela do que se passa na realidade e, vítima da grande ilusão, entra em cena para salvar a sua amada, a professora, que afinal é apenas uma atriz. Para ele tanto faz.
Voltemos a Sofia Aparício, não por obsessão, mas por este ser um papel maior na sua carreira (ou desejávamos nós que fosse). No seu percurso pós-manequim, tem feito muita televisão e pouco cinema, são geralmente competentes as suas prestações, mostrando que se adaptou bem ao novo meio e até que funciona em papéis que não peçam um talento nato ou anos de experiência. Talvez fosse o que se pedia aqui.
Há fortes traços em comum entre a figura pública Sofia Aparício e a personagem que representa, não querendo nós com isso dizer que o filme é autobiográfico (tal como Wrestler está longe de ser uma autobiografia de Mickey Rourke). Não o é de todo. A ideia de pôr uma atriz ex-modelo a fazer de atriz ex-modelo, aparentemente, tinha tudo para dar certo. Mostrando algumas dificuldades pelas quais, muito provavelmente, a própria Sofia Aparício passou quando optou por mudar de carreira. Escapou, no entanto, um pormenor: é que é preciso uma grande atriz para representar o papel de uma má atriz, e é preciso ser uma grande atriz para fazer de si própria. Basta ver, por exemplo, como Catherine Deneuve é fantástica em Eu Quero Ver (2008). E claro, há filmes que sobrevivem bem a interpretações medianas, mas este em concreto, para resultar, precisava que a atriz chegasse a um ponto sublime, de transfiguração, de emoção. Teria que ser arrepiante e comovente, de forma a nos passar o seu drama e a solidão da recitação, tão decisiva e bem escolhida, do Monólogo da uma Atriz enquanto se Maquilha, de Brecht. Que seria o mais que perfeito remate do filme, se a atriz conseguisse fugir da tela.
Pena este não ser apenas um pormenor. Porque o filme tem duas grandes atrizes que se fazem notar: Isabel Ruth e Rita Durão. E até por aí que se descobrem as diferenças. Acreditamos mais em Rita Durão a fazer de atriz-professora psicologicamente agredida, do que Sofia Aparício a fazer de si própria. Não obstante, o filme tem algumas pontas soltas, como a insólita personagem do amante francês (Christia Cloarec), sempre à deriva, ou a cena de nudez gratuita de puro mau gosto. E o Tempo passa, o regresso de Alberto Seixas Santos às longas de ficção, 12 anos depois de Mal, não deixa de ter um bom conceito, que serve também de linguagem ou de ferramenta, que é essa fricção entre a ficção e a realidade. Pena é que tantas vezes não dê para acreditar.