É assim como descrever uma festa de arromba e ficar-se pela cor dos guardanapos. Ou como assistir a toda uma sinfonia só para ouvir o gongo final. Ou como olhar a floresta e nem se reparar na árvore, apenas na folhinha. Estamos nos finais da década de 30, a Europa convulsiona-se, à beira da II Guerra Mundial, o poder de Hitler consolida-se, o nazismo alastra como uma mancha de óleo, o genocídio dos judeus está em curso, multidões em fuga tentam atravessar as fronteiras, Churchill posiciona-se, Londres pode ser bombardeada a qualquer momento, e o filme inteiro (O Discurso do Rei, estreia-se hoje, 10) gira em torno da disfunção da fala de George VI. Ou seja, reina a maior agitação no tabuleiro de xadrez internacional: tresmalham-se os peões, fortificam-se as torres, combatem os cavalos, afadigam-se os bispos, apoquenta-se a rainha, e o rei… vai mudo. Em jornalismo, a isto chama-se fechar o ângulo. Em cinema, poder-se-ia chamar um toque genial de argumento, o de deixar de fora todo o essencial para focar apenas o acessório, velar toda e qualquer factualidade histórica, para acender os holofotes sobre o fait-divers. Mas também se poderia chamar um íman para os Oscars (ou, pelo menos, para as nomeações). O filme de Tom Hooper, que fez carreira em séries televisivas, pertence à segunda categoria.
É, sem dúvida nenhuma, um feel-good movie, mas só para quem já está previamente in the mood – ninguém sairá mais bem-disposto do que antes, depois de assistir a um filme cuja cena climática é aquela em que o rei se dirige à nação sem tartamudear. É certo que ele consegue, enfim, falar aos microfones sem tropeçar nas sílabas, mas, na verdade, acaba de comunicar aos súbditos os tempos tenebrosos que se anunciam. E, no entanto, estala o fogo-de-artifício mais festivo no Palácio de Buckingham, todos batem palmas de alegria, todos congratulam o rei, animados que vão com a proeza oral: o staff real, os membros do Governo, os bispos, até a rainha que, como se sabe (é um facto histórico) permanecerá com ambas as filhas numa Londres debaixo de fogo.
Aconchega muito o coração das massas, e é sempre bom para engordar bilheteiras, saber-se que, no peito de um desafinado, também bate um coração. Neste caso, que, por detrás de mantos e tiaras e de hectolitros de sangue azul, os reis são pessoas como nós. E são canhotos como este relutante monarca. E gagos. E até têm traumas de infância e problemas de estômago.
O reino por uma voz
E terá George VI (Colin Firth) de descer do seu pedestal para conseguir resolver o seu impedimento verbal. No século XX, para um rei fazer boa figura, não bastava ficar-lhe bem o uniforme ou frequentar caçadas a raposas sem cair do cavalo. Um rei sem voz, à época do advento das tecnologias da comunicação, tornava-se bastante embaraçoso e foi Elisabeth (Helena Bonham Carter), futura “rainha-mãe”, quem convenceu o marido a frequentar as sessões de um supostamente excêntrico e pouco ortodoxo terapeuta da fala (Geoffrey Rush). Mas, afinal, a única excentricidade do professor – que existiu mesmo e foi alvo dos mais altos louvores pela excelência dos seus préstimos à pessoa do rei – é ser australiano, não ter nenhum diploma, não respeitar o protocolo e ter a mania de puxar o autoclismo no momento em que o real casal lhe aparece no consultório. Todos comentam os seus métodos pouco ortodoxos, quando eram os professores oficiais aqueles que insistiam para que o rei fumasse – o fumo descontrair-lhe-ia as cordas vocais, diziam (anos depois, e após numerosas mazelas, o rei morreu, em 1952, de cancro nos pulmões) – e em que falasse com berlindes na boca – o que parece, se não maligno, pelo menos bastante arriscado. Este pouco carismático Lionel Logue limita-se a pôr o rei a cantar, ou a debitar o solilóquio de Hamlet, To Be or Not To Be, enquanto ouve as Bodas de Fígaro em estereofonia (um anacronismo), num gramophone high tec, insiste em tratar Sua Alteza por Bertie e fá-lo despejar a sua raiva em palavrões, que aparentemente não lhe entaramelam a língua. E foi esta cândida cena, durante uma consulta de terapia da fala (os americanos estão cada vez mais loucos…) que fez com que o filme fosse interdito a menores. Parece que o rei diz 17 vezes a palavra “fuck”. Seguidamente, baixaram a interdição para “Maiores de 12 anos”, com a advertência “contém linguagem forte num contexto terapêutico”.
Está latente o apelo voyeurista que estes filmes sempre transportam – de tornar invisíveis os muros dos palácios reais -, embora sem conseguir tocar nas franjas do manto real de A Rainha (2006), de Stephen Frears, que primava pelo bom-gosto e por uma extrema subtileza. O Discurso do Rei parece, sobretudo, apostado em não criar controvérsia nenhuma. Quer alcançar o favoritismo pelo consenso, ninguém adora, mas também ninguém detesta – e isto, pelo menos na fase das nomeações, parece ser uma boa estratégia.
É um filme demasiado bem-comportado. Como aqueles bons alunos que têm sempre os cadernos muito limpinhos e avisam a professora que se esqueceu de marcar o trabalho para casa. Os autores estão tão preocupados em evitar qualquer polémica e em não se descentrarem do foco do filme – a disfunção oral do rei – que o que acabou por sair foi também um filme gago, hesitante, que anda aos esses, aos solavancos, a tentar evitar terreno minado. O caso da abdicação do Eduardo VIII, irmão mais velho de George VI, por pretender casar com uma americana bidivorciada é tratado pela rama do escândalo mundano, como nas revistas cor-de-rosa – e o facto de o legítimo herdeiro do trono ter sido pró-hitleriano, admirador do III Reich, nem sequer é mencionado. Passa-se adiante, numa caminhada coxa. O próprio Winston Churchill (numa péssima caricatura, pelo ator Timothy Spall) aparece na postura reverencial, também muito bem-comportadinha (quem diria?), de apoiante do novo monarca, quando, na verdade, ele simpatizava com a ideia de manter o playboy nazi no trono. Mais um passo em frente e “andor” que se faz tarde.
No fundo, dirão os partidários do filme, isso são “só” pormenores históricos, águas passadas, sem relevância. O que interessa, ainda nesta lógica simplista e caçadora de audiências, é o lado humano dos reis. E como um modesto plebeu, o pacato professor a quem o filme faz passar por excêntrico, pode influir numa pessoa da mais alta estirpe britânica. O que é, diga-se, a ideia mais reacionária do filme, hoje só mesmo admissível numa lógica Disney.
Numa história de amizade e de um encontro improvável, com os inevitáveis efeitos elásticos, de repúdio e atração, de reconhecimento e, ao mesmo tempo, de rejeição real deste estranho homenzinho que obrigava o monarca de Inglaterra a falar – mesmo do que ele não queria -, Discurso do Rei é aparentemente funcional, cumpre todos os clichés do género buddy-movie e tem uma boa fotografia e uma boa banda sonora. O problema não são os atores mas as personagens, completamente destituídas de charme e de capacidade de provocar empatia. Aliás, são os três, Colin Firth, Helena Bonham Carter e Geoffrey Rush (todos nomeados na categoria de melhor ator, melhor atriz secundária e melhor ator secundário) que sustentam as pontas do filme. E os mais válidos responsáveis por este filme ter sido colocado no mapa.
O rei vai mudo
Mas não é, de todo, o papel mais consistente da carreira de Colin Firth, que brilhou em Valmont, de Milos Forman, em 1989, e ficou para sempre colado a Mr. Darcy, personagem de Jane Austen, em Orgulho e Preconceito (1995). Passou por papéis mais débeis, como nos Diários de Bridget Jones (2001 e 2004) e Mamma Mia (2008), fez muitos secundários sólidos e é conhecido por ter perdido duas vezes a mulher para os irmãos Fiennes: para Ralph Fiennes, em O Paciente Inglês (1996), e para Joseph Fiennes, em A Paixão de Shakespeare (1998). De resto, é sempre um valor seguro, com uma britanidade contida, sem tiques e exibicionismos à Hugh Grant. Firth não foi a primeira escolha. Paul Bettany, que recusou o papel, o inesquecível cirurgião darwinista de Master & Commander (2003), de Peter Weir, faria provavelmente um rei com outro encanto. Ao longo do filme, não se consegue deixar de pensar “olha o Firth a fazer de gago”. Fá-lo, é certo, sem rasgos mas, como sempre, à sua maneira competente. Ainda em 2009 desempenhou uma personagem verdadeiramente densa e sombria, o professor universitário cinquentão à beira do suicídio por perder o companheiro de sempre, em Um Homem Singular, de Tom Ford, e já vai sendo altura de ganhar um Oscar.
Aparentemente um erro de casting, Helena Bonham Carter, enverga os trajes reais da “rainha-mãe” na perfeição, carregada de bom senso e paciência, tão longe dos seus habituais bizarros e burtoniescos papéis.
Geoffrey Rush salta diretamente (à abordagem!) dos navios cheios de algas e alforrecas dos Piratas das Caraíbas para cumprir esta missão de retirar a voz do rei da camisa de forças que a sufocava. A sua imagem está demasiado pegada à de corsário mal-encarado, mas todo o seu prestígio vem de Shine (ganhou o Oscar de melhor ator, em 1996), em que foi um genial pianista australiano (inspirado em David Helgott) de juízo débil. Aqui, a personagem não descola nem fascina, porque talvez esteja demasiado agrilhoada à realidade. Este era um terapeuta da fala porventura tão enfadonho como os terapeutas da fala normais. E as pessoas normais nunca têm nada de especial. Despindo todos os mantos e fatiotas da exuberância real, o filme vai nu. Em Hollywood. vigora a mesma regra do velho Oeste de Ford: quando a lenda se torna facto, publica-se a lenda. Melhor seria.
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‘OSCARS’ Na primeira fila
O Discurso do Rei pode não ser o filme favorito, na 83.ª edição dos mais célebres prémios de cinema, mas lidera a tabela das nomeações, em termos quantitativos:
– Melhor filme
– Melhor Realizador (Tom Hooper)
– Melhor Ator Principal (Colin Firth)
– Melhor Atriz Secundária (Helena Bonham-Carter)
– Melhor Ator Secundário (Geoffrey Rush)
– Melhor Banda Sonora (Alexandre Desplat)
– Melhor Fotografia
– Melhor Montagem
– Melhor Direção Artística
– Melhor Guarda-Roupa
– Melhor Mistura de Som
– Melhor Argumento Original