“É duro, áspero e difícil de digerir”, comenta o realizador espanhol Daniel Monzón acerca do seu filme Cela 211, que se estreou no Festival de Veneza, em setembro, e chega agora, 2 de dezembro, a Portugal, ajaezado com oito prémios Goya no currículo (considerados os Oscars espanhóis, entre eles os de melhor filme, melhor realização, melhor argumento e melhores atores). A dureza e a aspereza é fácil de detetar num thriller cuja ação decorre numa prisão, onde acaba de estalar um motim, justamente na ala dos reclusos mais perigosos, aqueles que estão condenados a penas perpétuas e já não têm nada a perder. Olhares alucinados, gestos bárbaros e sanguinários, um manicómio desordenado de caos e violência, um raide aéreo sobre um ninho de cucos que já conhecemos de tantos outros filmes. Logo a primeira cena, um preso a automutilar-se meticulosa, silenciosa e explicitamente, de braços esventrados a esvaírem-se no lavatório da cela 211, dá-nos o tom do filme, como um diapasão antes do concerto. O espetador é, desde logo, convidado a afinar por este tom “duro e áspero”, mas também cru e desapiedado. A questão é que ao longo do filme o “tom” não para de subir, a escalar partituras, até que toca nas cordas do sistema nervoso central da condição humana – mais moral do que físico – e é isso que sempre provoca as arrevesadas digestões de que fala o realizador. A mesma questão de todos os tempos: o que é preciso para se atravessar a fronteira interna entre o bem e o mal? Um mero passo ou um tiro de canhão? ETA presente Apesar de algumas ingenuidades, e de alguns efeitos redundantes e que não acrescentam, antes diminuem (como as cenas no exterior da prisão) -, o filme ganharia muito mais força se não tivesse esses momentos de evasão, às vezes um pouco líricos -, Cela 211 acaba por ser muito mais do que um thriller prisional à americana. Também é muito mais do que a história de um homem (um guarda prisional inexperiente, na véspera do primeiro dia de trabalho) apanhado no local errado, à hora errada: no momento em que os colegas lhe dão algumas explicações prévias sobre o futuro trabalho (“Eles podem sair mas tu passarás aqui a vida inteira”) estala um motim e ele é colocado inadvertidamente na cela vazia, a 211, onde o preso do início se suicidara. Já vamos na história do homem apanhado no meio da tempestade impossível, com ventos adversos, vagas mortais e correntezas traiçoeiras. Para sobreviver, ele terá de fazer-se passar por preso. Avançamos para a história do infiltrado. Entretanto, como uma jangada à deriva no meio de um oceano convulso, o argumento dá várias voltas, vira-se várias vezes o tabuleiro do jogo. Assiste-se à metamorfose, do homem bom e honesto ao monstro que, afinal, vivia dentro dele. A tempestade prisional continua a trazer destroços para a praia: ora a amizade improvável com o “tubarão” da ala, o líder da rebelião (o fantástico ator Luís Tosar); ora os códigos de honra que parecem mais sólidos dentro das grades do que fora delas; ora o sistema prisional em Espanha e suas corrupções e cumplicidades; ora o abuso de poder… E já íamos com o barco bem entornado, quando entra em cena o grupo dos presos da ETA, uma questão muito sensível em Espanha, que o Governo de Zapatero trata com pinças. Subtilezas de que os presos comuns deste filme desde logo se apercebem: “Vocês são profissionais, nós somos todos amadores.” Eles são usados pelo grupo amotinado como escudo humano, como reféns a sacrificar, sem apelo nem agravo, caso o Governo não ceda às suas reivindicações. “Faz-se o que se pode”, repete o jovem guarda, no início, a tentar salvar a pele e a situação Também se faz o que não se pode. A moeda tem duas faces, basta rodopiá-la para vir ao de cima a face negra, tão criminosa como o bando de homicidas e psicopatas que o herói impoluto (o estreante ator argentino Alberto Ammann) temia. Isso é, de facto, indigesto. Cena final, última fala do diretor daquela prisão de arquitetura circular e oitocentista, durante o interrogatório oficial: “Alguna pregunta más?”
Cela 211: O Outro que era eu
É tão fina a linha entre um herói e um vilão que nem os muros nem as grades de uma prisão os podem separar. Cela 211: a maior surpresa do cinema espanhol dos últimos anos
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