Reviu a hipoteca da casa para pagar o filme. E agora, ao lado de uma grande obra, ficou com uma grande dívida. Miguel Gonçalves Mendes, autor de
Autografia (sobre Mário Cesariny) e
Floripes, aos 32 anos, parece ter feito o trabalho de uma vida. Não nos admira, por isso, que afirme: “Os documentários para mim acabaram”. É que, além da dívida, transformar 240 horas em duas, só pode ser doloroso.
Mas o sucesso adivinha-se. Para a produção do filme contou com o apoio de Fernando Meireles e da El Deseo, de Pedro Almodóvar. O próprio realizador vai encarregar-se da distribuição, com o notável número de 25 cópias em Portugal e 16 no Brasil. Também se estreará em Espanha. Em José e Pilar descobrimos Saramago que nunca vimos, íntimo e pessoal, que fala da morte, de Deus, que lida com a fama, que ri e quase chora, e que, acima de tudo, tem uma vontade insaciável de viver. É também a história de um casal feliz.
JL: José e Pilar é uma história de amor?
Miguel Gonçalves Mendes: É uma história de vida, amor e morte. Está tudo ligado. Desde miúdo que sou fã do Saramago. No primeiro filme que fiz, sobre a relação entre Portugal e a Galiza, perguntei-lhe se podia gravar um excerto do Memorial do Convento. E ele aceitou. Foi esse o primeiro contacto.
Mas entretanto fez um filme sobre outra grande personagem da literatura, o Mário Cesariny…
Quando fiz Autografia, já tinha o projeto de fazer um filme sobre o Saramago. A verdade é que eu próprio queria conhecê-lo. Havia reportagens de televisão, documentários, mas nada com um lado mais intimista, sobressaía apenas aquela imagem do tipo cinzento e antipático. Eu próprio quis tirar isso a limpo. Depois também me pareceu que o papel da Pilar na vida do Saramago era pouco falado. Ela é um pilar do próprio José. Por isso resolvi pegar por esta dupla, que, em conjunto, tenta intervir para mudar o mundo de forma muito cívica. Há um ativismo em comum.
Também há uma divisão muito clara de tarefas. É Saramago quem diz: “Eu tenho ideias para livros e a Pilar para a vida. Não sei o que é mais importante”…
Isso é sintomático. São coisas que me fazem pensar que houve mesmo um encontro cósmico entre os dois. Ele é muito português, melancólico, contemplativo… A Pilar é mais proativa, muito espanhola. Formam uma simbiose perfeita. O que a Pilar faz aumenta o potencial do trabalho do José, que é escrever romances. Só que, ao mesmo tempo, partilham uma certa austeridade, as crenças, uma visão do mundo. Eles diziam que não estavam casados há 20 anos, mas há 60. Passavam as 24 horas de cada dia juntos.
Provavelmente não haveria este Saramago sem esta Pilar?
O grande e incrível escritor José Saramago existiria sem dúvida, mas não sei se teria esta projeção mundial.
O Saramago diz que falar de literatura aborrece-o porque o mundo é que precisa de ser falado. Curiosamente, no filme, a literatura está presente, através de grandes temas, como a morte, e a própria construção do livro (A Viagem do Elefante), mas não há uma reflexão sobre a arte de escrever…
Mas tinha que haver? No caso do Autografia era diferente , porque o discurso do Mário Cesariny não é muito conhecido. Mas o do Saramago é. Há entrevistas publicadas em livro com o seu discurso. O que não existia era esta visão intimista. Por isso não me interessou toda essa parte sobre o papel do escritor… ele próprio diz que a vida do escritor é um bocado romantizada e a angústia da página em branco ridícula. Simplifica tudo: quando um escritor se senta para escrever ou tem ideias ou não; se não tem, vai dar uma volta e regressa mais tarde. Muito pragmático. Comecei por desenhar o filme à imagem do Mário, mas depois achei que não fazia muito sentido. Precisava de ser uma coisa a longo prazo, para a confiança ser estabelecida e eu conseguir momentos de verdade, ou seja, chegar ao ponto em que se perdem as máscaras públicas. O papel da literatura em si não é muito importante, a não ser na intervenção cívica.
Há uma ideia feita, por quem nunca leu Saramago, de que ele não usa pontuação. Ele usa-a e muito bem, por isso é que os livros têm aquele ritmo. Procurou pontuar da mesma forma o filme?
Isso seria maravilhoso. Chegámos a pensar nisso. Mas achámos que estaríamos a condicionar tudo a uma estrutura que poderia ser assassina para o próprio filme. A dificuldade que nós tivemos foi condensar a vida de uma pessoa em apenas duas horas de filme, não afugentando o público. Entre os amigos que viram o filme, há uns que gostam do lado banal, quotidiano, que o filme tem; outros queixam-se por não estar lá o pensamento de Saramago.
Mas está lá!
Sim, está nas pequenas coisas.
E também no próprio tratamento que dá às imagens. Há uma ousadia formal. No início do filme, Saramago aparece com o universo por trás, ilustrando o seu pensamento. Não se ficou por um documentário convencional…
É uma opção deliberada não constituir um documentário chapa cinco. O do Cesariny também não era. Mas seria mais tradicional, porque foi feito à base de entrevistas. Há quem fale da verdade do documentário, mas isso é extremamente relativo, porque a partir do momento em que se passa uma música provoca-se uma sensação. No fundo, eu tenho ideias que se podem aplicar a um registo de ficção, documentário ou curta-metragem. Mas os meus filmes antes de mais são filmes. A minha batalha é que o filme seja fiel ao que sou.
Acho particularmente brilhante a parte em que ele está no hospital e fala dos sonhos esquisitos que teve. Filmam então as luzes do teto de uma forma que até parece um filme de terror…
Logo de início tentei que o filme pudesse ser lido com uma estrutura narrativa clássica ficcional. Uma história. Temos uma personagem que quer fazer um livro, adoece, acha que vai morrer, consegue recuperar e acaba de escrever o livro. Usámos os mecanismos que de alguma forma permitiam as pessoas identificarem-se com as personagens. Também por isso, usámos as leituras do diário em voz off. É um ambiente onírico que expressa o estado de espírito dele. Eu não podia filmá-lo enquanto estava internado. Então encontrei essa solução.
Parte dessa riqueza, é que consegue fazer isso dentro da lógica interna do filme. As luzes são mesmo as do hospital. A partir do real, com a ajuda do texto, dá um ar aterrorizador.
No outro momento, faço o oposto, ele grita pela Pilar e eu opto por deixar tudo escuro. É outro sonho que ele teve.
Ele grita pela Pilar e ela não aparece. Esta não é uma história de amor lamechas. É uma história de amor, com muito humor à mistura, mas também não é uma comédia romântica…
Estou a contar um filme sobre o Saramago, mas também sobre mim mesmo. A presença constante da morte é recorrente em todos os meus trabalhos. Por isso também é fiel àquilo que sou. Poderia viver mais 10 ou 15 anos, mas o game over estava mesmo ali a chegar. Ele diz que tudo lhe aconteceu muito tarde na vida… A Pilar, mesmo a escrita, só começou aos 60. Ele tinha uma sofreguidão de vida e nesse aspeto o filme é muito otimista. Enquanto o do Cesariny era bastante triste, por ser uma despedida de alguém, este tem um lado maravilhoso, é alguém que não quer morrer, que quer viver intensamente, porque acha que ainda tem quinhentas mil coisas para fazer e para dizer. A vida que temos é esta não vale a pena ficarmos para aqui a chorar, deprimidos.
A primeira gargalhada do filme dá-se quando ele se senta ao computador e, em vez de escrever, começa a jogar uma paciência de cartas. Depois percebe-se que não é procrastinação, mas uma ginástica do cérebro, de forma metódica.
Ele era mesmo muito metódico, fazia isso tal como andava de bicicleta todos os dias. Tinha uma noção de missão. Há uma altura em que lhe pergunto: ‘Porque trabalha tanto, porque vai a todo o lado, porque dá tantos autógrafos?’. E ele responde, com grande hombridade: ‘É chato, mas é o mínimo que posso fazer pelas pessoas que compram os meus livros e me alimentam’.
Por outro lado, dá a ideia de que, se não fosse a Pilar, ele ficaria fechado em casa a escrever e quase não iria a lado nenhum, ele até brinca, dizendo que gostava de re-encarnar árvore, para ficar com as raízes bem presas à terra…
Isso é como eu dizer que gostava de ir viver para o campo e cuidar dos animais. Provavelmente nem conseguiria deixar Lisboa. Claro que aquilo o cansava. Mas também lhe dava vida. Ele diz: ‘Que homem de 80 anos seria eu se não tivesse conhecido a Pilar?’ Tudo faz parte. Um escritor, além de escrever, tem de vender livros e dar autógrafos.
Ele fica com a ideia de que a Pilar quase o ressuscita.
Ele diz mesmo isso. O nosso problema em relação à Pilar é não lidarmos bem com tanta frontalidade. Há um moralismo sobre a realidade que nos impede de dizer as coisas como são. Por isso é que não digerimos bem aquela forma de ser prática, tão espanhola, como a cena em que ela rasga as cartas. Mas se dissecarmos bem a coisa, ela tem razão, é mesmo assim. O filme é muito amoral, mesmo em relação aos dois. Não é elegíaco. Temos margem de manobra para gostar, não gostar, criticar ou defender.
A obsessão pela morte é transversal ao filme, mas também por Deus. Como interpreta essa fixação de Saramago no Deus em que não crê?
Concordo que as religiões sempre serviram para manipular o ser humano, exista Deus ou não. É um facto. Acho bem que alguém o diga. E é maravilhoso que, em 2010, aos 87 anos, ele tenha escrito o Caim e tenha posto o país (ou vários países) a discutir Deus. E de repente temos em horário nobre, na SIC e na TVI, teólogos a falar sobre Deus. É fantástico. Na minha geração a questão de Deus é quase irrelevante, podemos acreditar mais ou menos. Mas para um homem nascido em 1922, Deus tem um papel muito mais grave. É a questão do pecado. Há um ajuste de contas a fazer, uma picardia constante entre Saramago e Deus, que até é divertida.
Há também a subida dele à montanha, que podia ser bíblica, mas tem a ver com a caminhada do elefante.
Sim, mas não só. Interessava-me mostrar a diferença entre ele e a Pilar. Ele não tinha razão nenhuma para subir à montanha, mas subiu porque sim, porque quis. E a Pilar responde-lhe; ‘Se queres uma aventura faz um bordado’. Acho muito metafórico da vida dele. Ele diz: ‘Pensei, se cair daqui não vou poder escrever mais livros, mas nada disso era importante, o que importava era conseguir chegar lá acima’. E chegou.
O filme acaba como se fosse uma carta à Pilar… Acha que estava subjacente a ideia de que esta seria também uma forma do Saramago lhe dar alguma coisa?
É possível. Inicialmente ele não queria o filme. Entretanto viu o do Mário e gostou muito. Só que depois disse, de forma humilde, que tinha medo de não ter coisas tão interessantes para dizer. É verdade que o Mário é um poeta, e ele não. É um tipo metódico e trabalhador. Uma vez ele disse isso à Pilar: ‘Isto é uma grande dedicatória de amor à tua pessoa’. Ela respondeu: ‘José, a minha vida também é uma grande dedicatória de amor’. E é mesmo.
Gravou quantas horas?
240. Foi um pesadelo. Quatro anos de pesadelo. A nível monetário, fiquei com uma dívida de 100 mil euros. A montagem foi terrível, Demorámos cinco ou seis meses apenas a ver aquilo. Depois fizemos uma versão de seis horas, depois cortámos para três. Foi quase um ano e meio de montagem. Houve uma altura em que perdi a lucidez sobre o filme. Há coisas maravilhosas que retirámos e eu não sei se não são melhores do que as que ficaram. Precisava de mais seis ou sete meses de distância.
Há o velho conflito entre o escritor e a sua pátria. Mas Portugal devia agradecer-lhe por ter sido um português a fazer este filme.
Julgo que essa foi uma das razões por que ele me deixou avançar. O Saramago gostava muito de Portugal. Mas, claro, ele tinha aquelas teorias iberistas, das quais eu discordo. Não é por ódio aos espanhóis, aliás um bocadinho do ego exagerado deles não nos ficaria mal. Mas somos distintos. Eles são mediterrânicos e nós atlantistas. A forma de estar no mundo é diferente. Mas a verdade é que o filme teve para se chamar União Ibérica, por ser uma união entre os dois. Mas depois daquelas declarações que ele fez, tive que pôr de parte. Ele próprio concordou: ” Não quero que um filme sobre mim fique conotado com apenas uma ideia que tive”.
O Saramago era uma pessoa dura e com acessos de antipatia, mas no meio disto tudo, com um humor muito especial, que também descobriu.
É um humor rezingão, no bom sentido. Ele era muito engraçado.
Também há um outro humor, de situações caricatas em acontecimentos públicos.
Interessava-me a forma como ele lidava pessoalmente com as conferências de imprensa e as sessões de autógrafos. Por exemplo, poderia pôr o Gael Garcia Bernal a fazer-lhe um grande elogio. Mas o que me interessava, no caso, era saber como aquelas duas figuras públicas lidam com o lado mais chato da fama. É como se tivéssemos um Saramago superstar aos 86 anos. E ele tem de lidar com aquilo.
O que não filmou?
A única coisa que queria, mas a Pilar não deixou, foi um genérico inicial, onde ele aparecia a nadar. Também queria filmá-lo a fazer a barba, só que ele não quis.
Apesar de ser um retrato íntimo, há limites de privacidade. Onde parou?
Não parei. Poderia ter pedido para filmar a cama deles enquanto dormiam, mas não me passou pela cabeça, nem eles autorizariam. Foi um processo muito longo. Passava três horas de trabalho a filmar para aproveitar um minuto. Mas o que aconteceu de maravilhoso foi a confiança total que tiveram em mim. Sabe-se lá porquê. É muito perigoso colocar a vida nas mãos de alguém. As imagens podem ser manipuladas. Poderia construir uma história totalmente diferente. Mas em nenhum momento ripostaram a nenhuma cena. Quando lhes mostrei estava com pena de o Saramago se confrontar com a sua própria decadência e com a presença constante da morte. Mas nada. Não houve um único reparo. É de uma grande coragem e generosidade. Eu não sei se deixaria alguém fazer um filme destes sobre mim.
O que disse Saramago do filme?
Que era sobre a vida, que era mais do que um filme sobre eles os dois.
E não lhe deu um beijinho na testa, como o Fernando Meireles?
Não, aliás há uma cena que não usei no filme, do segundo visionamento do Ensaio sobre a Cegueira, que o Saramago pede ao Meirelles que pare com essa coisa dos beijos.
Não era possível fazer este filme sem esse esforço e todas essas horas de montagem. Há uma única cena em que se mostra presente, e lembra-nos que é um documentário. Porque se incluiu nessa cena?
Comecei a irritar-me com o meu moralismo em relação aos jornalistas. Porque pareciam todos uns chatos, enquanto eu era um tipo fantástico que estava para ali a filmar sem chatear ninguém. Foi um mea culpa, quis dizer: eu também fui chato, também o incomodei.
A música acaba por ter uma presença forte. Que música ouvia o Saramago?
Gostava muito de música clássica. Havia um tema do Chopin que saiu do filme, porque custava muito dinheiro. Ele era muito versátil. Ouvia jazz, era fã do fausto. Era capaz até de ouvir um CD de rock, apesar de não ser a praia dele.
Mas a banda sonora do filme é muito especial…
A minha ideia era convidar vários músicos para comporem através das entrevistas que ele me deu, assim como se fosse uma tragédia grega. Depois não funcionou bem assim. A Adriana acabou por ficar como uma espécie de música de fundo. Mas por exemplo, a do Camané, foi construída pela Manuela de Freitas a partir das respostas do Saramago.
Não vejo livro que fosse mais conveniente ao filme do que A Viagem do Elefante, por dar mesmo essa ideia de caminho. Foi uma sorte…
Era o livro que ele estava a escrever. Aparecem outros, de forma discreta, sem estarem metidos a martelo, como As Intermitências da Morte, Ensaio sobre a Cegueira, As Pequenas memórias ou o Caim. Mas sem dúvida que A Viagem do Elefante tem essa força metafórica. Um enorme ‘para quê?’ Depois daquele esforço de não sei quantos quilómetros cortaram as patas ao elefante. Isto liga com outra coisa que ele diz, de que gosto muito: ‘Tudo vai desaparecer, que o universo não saberá que nós existimos, que o universo não saberá que o Homero escreveu a Ilíada?
Fez um documentário como se fosse uma ficção e uma ficção como se fosse um documentário. O que se segue?
Os documentários acabaram para mim. Há uns tempos queria fazer um chamado Deus queira que Deus exista, sobre a forma como as diversas culturas lidam com a morte. Mas entretanto caiu. Não aguento mais. É um processo demasiado longo, demasiado doloroso. No documentário as possibilidades são infinitas e eu fico sempre angustiado com a escolha. Prefiro a ficção.