Na sala apinhada da Casa Fasano, estrutura arquitetónica de linhas contemporâneas feita de vidro e de palmeiras, lugar bem conhecido da elite paulistana, as apostas corriam sem moeda mas com afecto: quem seria o vencedor da oitava edição do Prémio PT de Literatura 2010, um dos galardões mais conceituados atribuídos a livros em língua portuguesa, com um valor de 100 mil reais (cerca de 42 mil euros)?
“Chico, claro.”
“Se Chico aparecer, é ele, lógico”.
Esse mesmo, o Buarque. Cantor, compositor, dramaturgo, futebolista de mão cheia (conta quem viu) e escritor com obra feita em quatro livros. De sua graça: Estorvo, Benjamim, Budapeste e Leite Derramado (edição portuguesa Dom Quixote). Todos traduzidos e celebrados, somando ainda outra matemática prestigiada: três prêmios em quatro obras. Um deles, um prestigiadíssimo Jabuti, recebeu-o há poucos dias. É obra de operário em construção séria, para baralhar referências com gosto tropical. Personagens bem burilados que ficam no ouvido. Chico Buarque não desapontou: chegou de fininho, no escurinho da sala já ambientada pelo som de uma banda ao vivo, à espera do mestre de cerimônias, o humorista Jô Soares.
O nome do vencedor foi anunciado por Pilar del Rio com visível satisfação; e Chico subiu ao palco, em ovação. Camisa azul e branca de riscas, paletó creme, magro. Confessa que quando soube que ia receber o prémio, ficara logo com “dor na garganta” – susto de um tímido com milhares de horas de concertos e aplausos. Jô empurra a conversa para outros relvados: “Será que o Fluminense ganha?” Bola ao lado da baliza do momento…
Mas, depois, lá ataca no meio campo. Escritor versus músico é como humorista versus escritor, lança, cúmplice, Jô Soares. O mundo parece empurrar para o rótulo de “amador”. Chico, ali desportista sem bola, replica: “Acho até legal. Se eu visse outro compositor ou apresentador escrevendo livro, talvez eu desconfiasse “. Mas ele não se considera amador, corrige até Jô quando este lhe surripia um prémio literário ao currículo- e conclui que este preconceito disfarçado “até é bom. Assim sempre que regresso à escrita, tenho de aprender tudo de novo, não ganho calo de escritor”. E, Dó redentor, afiança: “Quando escrevo, deixo o violão lá no canto. Quando acaba, dá saudade, dá vontade de fazer música.” Mais tarde, em roda de euforia jornalística, que lembra bancada de futebol em dia de campeonato, responde à VISÃO que não sabe avaliar se tem já um universo literário próprio. “Mas tenho a minha linguagem”. E, diga-se de passagem, pouco preocupada com o acordo ortográfico. A pátria dele é o idioma português, claro.
Em palco, Jô ressuscita uma nota wikipédica: ah, e essa música A Banda, que venceu em 1966 o Festival de Música Popular Brasileira? Buarque conta que uma das filhas, de passagem por Copenhaga, lá ouviu os acordos num bar, e disse que a música era do pai. A resposta pareceu piada nórdica: “Não, isso é folclore!” Olhos azuis não passa cartão vermelho à cena: “Já é quase negócio de domínio público.” O público ri, rendido, bem vestido, longe de compostura solene e literata.
Chico nem se enfada de ouvir, ao sair do palco, a banda a tocar A Banda, ao melhor estilo talk show. Ou ao posar para a foto, infelizmente sem os outros vencedores do prémio PT: Rodrigo Lacerda, autor de Outra vida, que esteve na cerimônia, usando uma camisa cor de laranja e aquilo que chamou com muita graça de “pessimismo preventivo”; e Armando Freitas Filho (que se fez representar), que escreveu Lar.
Os últimos lances são feitos de frenesim e palavras roubadas à paciência da produção e de seguranças. Chico Buarque que, por estes dias, está dedicado à música, diz que acredita “que há uma música permeando a história (de Leite Derramado)”, que “a frase tem um ritmo, quase uma melodia lá no fundo do meu ouvido”.
Chico brilhou, sim. Era Chico jogando em casa. Mas a luz galáctica pertenceu a Pilar e José. E a José e Pilar. O vídeo retirado do documentário filmado por Miguel Gonçalves Mendes, mostrando cenas da vida quotidiana e irremediavelmente perdida de Lanzarote, a declaração de amor por entre ventos agrestes e neblinas premonitórias, o rosto e a voz do Prémio Nobel (1998) a abrir o seu computador, concentrado… em fazer paciências, concentrado em homenagear o amor da sua vida em tantas dedicatórias de livros, todos sentindo a presença de Pilar naquela platéia, provocou uma vaga de comoção. A homenagem a Saramago, tomando em consideração a retirada do romance Caim da lista dos dez finalistas (por decisão conjunta da editora Companhia das Letras e da Fundação José Saramago, respeitando o desejo o escritor em dar lugar a outros escritores), pôs em campo emoções.
Jô Soares conheceu o escritor em 1982, num hotel parisiense. Saramago deixara-lhe recado: gostaria de o conhecer. Pilar brincou, mais do que se esperaria nestahomeangem que ele disse preferir chamar “celebração”, abrindo com esta divertida tirada: que Jô poderia ter casado com o seu marido, já que chegara antes dela, em 1986. O comediante brasileiro disse adorar a “ranzinzice” do escritor, uma “irritação cheia de humor” que convivia com uma visão do mundo. Acabou por falar em castelhano com a presidente da Fundação José Saramago, que a escritora brasileira Nélida Pinon, (ao lado de Pilar nesta homenagem, e que conheceu o casal durante a sua lua-de-mel), caracterizou como “um lugar lindo”, junto ao rio “onde você diz: o Brasil começou ali.” Ali, também ao lado da famosa Loja das conservas, que conquistou a imortal da Academia Brasileira das Letras: “vende latinhas de sardinha como se fosse uma livraria.”
A Fundação, repetiu Pilar Del rio, quer ser lugar vivo de idéias e debate. Para espelhar Saramago: “Tivemos muita sorte que se tenha registado (no documentário José e Pilar) o último tempo da vida de Saramago. (…) e de ver como ele, tendo 84, 85, 86 anos, escrevia todos os dias. Fez três livros. Escrevia um blogue, apoiava as lutas de outros, como a causa Saharaui, visitava a Livraria Cultura aqui em São Paulo… Estava absolutamente presente. Esteve em todas as causas e todas as coisas. Nunca nada lhe foi indiferente”, enumerou. No fim, quando saiu do palco, guardou a estatueta do Prémio nos braços. A cerimónia dos adeuses teve, desta vez, imaginamos, desejamos, um sabor menos amargo.