É um exercício um bocado estéril e infantil, mas de pura arrumação mental: se quiséssemos enfiar os filmes do filipino, Brillante Mendoza (o realizador que há pouco anos ninguém conhecia e de agora toda a gente fala) num daqueles arquivadores de cartão com uma etiqueta de identificação, a palavra que escrevíamos era “inclemência”. Os filmes de Mendoza, pelos menos estes dois (
Lola e Kinatay) que a distribuidora Alambique, em hora mais do que oportuna, lançou em DVD – o primeiro, numa operação inédita, em cartaz ao mesmo tempo – são autênticos tratados de inclemência. Tudo o que precisa de saber sobre a inclemência (des)humana e não teve coragem para perguntar está ali, naquela efeverscência de ruídos, estrépitos e alvoroços de Manila. Naquela coreografia desordenadamente real de trânsito, de caos, de buzinadelas, de graffitti, de lixo, de pessoas que andam, que se sentam a atravancar os passeios, que cozinham, decepam frangos no meio da rua, acotovelam-se nuns autocarros minúsculos, roubam-se, insultam-se e vendem ovos de pata.
Em Lola (sem dúvida, o melhor filme que esteve em cartaz nesta rentrée) há duas avós (chamam-lhes lolas em filipino) sujeitas a vários tipos de inclemência. A inclemência do tempo. Em ambas as acepções. A inclemência da meteorologia, chove o tempo todo, copiosamente, e uma das avós tenta endireitar a sombrinha decrépita, desarticulada pelas rajadas. Ao mesmo tempo quer proteger o neto pequeno das intempéries e do caos, mas é por ele amparada e guiada. Logo nas primeiras cenas, tenta acender uma vela num beco obscuro onde foi assassinado o neto mais velho. E na instabilidade daquela chama fustigada pelo temporal, está a instabilidade daquela outra inclemência, a da idade, que se verga ao peso dos anos, dos maus tratos da vida, e da artrite. Estas avós são hastes frágeis, submetidas e empurradas pela ventania, mas ainda assim permanecem presas ao solo. E têm aquele olhar de perplexidade das pessoas muito velhas, de quem já não entende este mundo nem os ruídos que ele provoca, e no entanto, continuam pregadas a ele. A avó do rapaz assassinado faz tudo para conseguir pagar-lhe o enterro. A avó do rapaz assassino faz tudo para conseguir pagar-lhe a fiança. Todo o filme são estas duas andanças trôpegas e derradeiras, contra ventos e penúrias. É um filme perfeito, em termos de estrutura. Tem várias simetrias, não só a das duas avós que caminham no mesmo e inverso sentido. Há a mesma música quando ambas empreendem viagens de angariação de fundos: uma de barco pelas casas flutuantes de Manila, a pedir alguns pesos aos vizinhos para ajudar enterro; a outra de motoreta no campo, em busca de víveres dos familiares da província para ajudar à fiança. Depois há dois momentos de respiração no filme que são absolutamente geniais, e também de simetria perfeita: Em plena cerimónia do velório, toda a família se mobiliza, numa algazarra de alegria, a tentar capturar uns peixes, que passam junto às casas dor rio. Tal como no campo, os familiares da outra avó correm atrás de uns patos. Estes dois percursos das “lolas” interceptam-se no fim, num ruidoso centro comercial, numa bolha onde elas se entendem e falam daquilo que as velhotas viúvas falam: doenças, remédios, artrites, manias dos respectivos maridos.
Kinatay, o filme anterior, deu o cognome de “infame”, a este realizador que nunca andou na escola de cinema, foi um “self-made cineasta” bastante tardio, fez um filme pornográfico que repudiou, passou por obras homo-eróticas, outras onde a verdade sexual ou a crueldade sempre foi declaradamente explícita. Mas para além da infâmia, que fez muita gente abandonar a projecção em Cannes, Kinatay (a sua sétima longa-metragem) também lhe garantiu o prémio de melhor realizador, a curiosidade internacional e os elogios de Quentin Tarantino. O filme começa de uma forma absulutamente solar, numa manhã, onde tudo fervilha de vida. Um jovem casal festeja alegremente o seu casamento, mas aos poucos o filme vai escurecendo, o dia vai enegrecendo e acabará no poço de terror mais hediondo. Um ser frágil, mais indefeso do mundo, uma prostituta toxicodependente é torturada e um grupo de homens brutos, polícias e inclementes cortam-lhe literalmente a vida aos pedaços. O ponto de vista é o do miúdo alegre do princípio, cúmplice involuntário, sem nada impedir, nem travar, nem fugir – nem ele nem os santos e Cristos que vão aparecendo em néons e em quadros. Deuses e nós, a assistir até onde pode descer a inclemência humana.