Ir a um festival de cinema como o Curtas de Vila do Conde, porventura o mais carismático, mais louco e sedutor do país, é, dizia alguém, como ir a um encontro secreto: não há nada de inesperado que não seja secretamente esperado pelo visitante. E a sua 18ª edição (com o mais extenso programa de sempre) foi mais uma história de encontros, com o seu princípio, meio e fim – não necessariamente por esta ordem. Por isso, como Godard faria, se bem lhe apetecesse, começamos pela extraordinária sessão de encerramento, o concerto-instalação concebido pelo realizador Bruno de Almeida: “Esse olhar que era só teu”. Uma homenagem a Amália é uma ideia profanada pelo lugar comum, desbaratada por desvalidas galas televisivas, ou outras serôdias iniciativas… Mas é sempre aquilo que conhecemos que nos apanha de surpresa. E algo se passou naquela sala do Teatro cor de rosa quando se juntou o quarteto mais improvável: Tó Trips na guitarra, Pedro Gonçalves no contrabaixo, Bruno na guitarra e manipulações electrónicas das gravações, e Amália Rodrigues, na voz – e na saudade. O realizador não aproveitou a ocasião para dizer que sentia, fez justamente o contrário: aproveitou o que sentia para dizer qualquer coisa. E já estava a sala bastante povoada de fantasmas, espíritos e outras aparições, depois da exibição, em ante-estreia nacional, do (chamar-lhe estranho é tão pouco), mas extra-terreste e delirante filme, do cineasta independente tailandês Apichatpong Weerasethakul que ganhou a palma de Ouro este ano, em Cannes (algo nos diz que o facto de Tim Burton presidir ao júri não foi indiferente a esta escolha), quando o auditório se torna a encher de ecos maravilhosos, fragmentos e reverberações de Amália. Já não nos lembrávamos o quanto ele podia ser bonita – e o grão das imagens cai-lhe tão bem. Como o borboto das camisolas, de tão lavadas e estimadas, lhe dão um encanto especial. Foi especial a festa, pá. Quase comovente, sem ser piegas. Ainda bem que Amália não comandava o coração, e o deixava “teimosamente sangrando. Pelo menos teve um coração para ser despedaçado e despedaçar o nosso. Mas todos os “ais” serão sempre seus. Um festival é feito de auês, como diriam os brasileiros – o uau português não é bem a mesma coisa. E este não foi o único auê da noite. A surpreendente curta vencedora da Competição Nacional (À Côté, de Basil da Cunha, um realizador completamente “fora do baralho”), outra vez um coração despedaçado, solitário, teimosamente sangrando, onde está tudo tão bem filmado e tão certo. E ainda a admirável animação de José Miguel Ribeiro (pela primeira vez na história do festival uma animação portuguesa ganha o Prémio da Melhor Animação), Viagem a Cabo Verde, um misto entre documentário intimista e umas maravilhosas aguarelas de um caderno, onde o realizador (autor de A suspeita de 1999, a animação portuguesa mais premiada de sempre) encontra um lugar no mundo tão pequeno que não desse para correr: “Quero aprender a andar”. Sem relógios nem pressas nem planos. E a encantadora homenagem ao cinema, por Gonçalo Galvão Teles, através de um homem do lixo, de uma empregada de restaurante, de Belarmino e de Fernando Lopes, claro, o mais convocado dos realizadores para filmes dos outros. E a certa altura, no filme Senhor X, ele diz: “A verdade na vida é o cinema”. O cinema é sempre uma alternativa ao real. Logo, uma transgressão. E é isto que os cinefóbicos nunca suportarão.
Vila do Conde: Amália mas não hoje
18 curtas inéditas na 18ª edição do Festival. E mais filmes-concertos, vídeo-instalações, experimentalismo, muito 3D dos anos 50, e festas pela noite fora
Mais na Visão
Parceria TIN/Público
A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites