Não podia estar mais na ordem do dia. Muitos dias tem o mês, de Margarida Leitão, que estreia a 10, aborda o problema do endvidamento das famílias. Filmado em 2007, quando surgiam os primeiros sinais da presente crise, o documentário, a primeira longa-metragem da cineasta, avança uma realidade porventura hoje ainda mais gritante, dos dramas de vida e dos sonhos desfeitos aos negócios que gera, reflexo de uma sociedade cujos créditos se centram na satisfação imediata e no consumo.
Na primeira semana de exibição, as sessões das 19 h, no Cinema City Alvalade, em Lisboa, ão acompanhadas de debate com a intervenção de Guilherme d’Oliveira Martins, presidente do Tribunal de Contas, Leonel Rubins, economista, José Gil, filósofo, Maria Cardeira da Silva, antropóloga, Rita Marrafa de Carvalho, jornalista, Afonso Albuquerque, psiquiatra e José Tolentino Mendonça, padre e poeta. Diferentes perpspectivas sobre uma situação “dramática”, “vivida muitas vezes de uma forma invísivel” que Margarida Leitão quis dar a ver. E não deixou os seus créditos por mãos alheias.
A realizadora, 34 anos, que se estreou com uma curta documental, Kilandukilo/ Diversão, sobre um grupo de dança angolana, em 1998 tendo feito também curtas de ficção como A Ferida ou Parte de mim, está a preparar um outro documentário sobre as manufacturas de luxo nas prisões femininas, Design por trás das grades e vai realizar uma curta-metragem de ficção, Mão morta, mão morta, sobre a violência na infância. Trabalha actualmente como técnica na série República para a RTP e na montagem de Margarida, do moçambicano Licínio de Azevedo.
JL: Quando pensou fazer um filme sobre os créditos e o endividamento?Margarida Leitão: Pouco a pouco, depois de 2005, foram surgindo notícias nos jornais sobre o aumento dos créditos, a que se fazia apelo por todo o lado. De repente, os sonhos que pareciam impossíveis estavam ao alcance de qualquer pessoa. Facilmente se conseguia um crédito para a viagem, a casa ou o carro. Quando comecei a filmar, já havia sintomas claros do aumento do endividamento e algumas preocupações. Entretanto, chegou-me às mãos um estudo do Observatório do endividamento da Universidade de Coimbra, que rrelatava vários casos. E começou a intrigar-me como é que as pessoas lidavam com essas situações em que por circunstâncias das suas vidas se viam impossibilitadas de pagar os créditos.
Sobretudo por causa do desemprego?
O descalabro é atribuído aos chamados três “d”: desemprego, doença e divórcio. Quer no documentário, quer na ficção, interessa-me sempre debruçar-me sobre situações limite. Porque não se trata apenas de uma questão económica, afecta emocional e psicologicamente. Há situações emblemáticas, por exemplo, a daquela senhora quenão podia ir ao cabeleireiro e não se reconhecia quando se via ao espelho. Não é apenas uma questão de beleza, de vaidade, mas de identidade. Por isso, as pessoas escondem-no muitas vezes até do cônjuge, vivem em silêncio e mesmo em negação. Daí os efeitos galopantes dos juros, a bola de neve que não conseguem controlar.
Foi isso que quis captar em Muitos dias tem o mês?
Mais, procurei saber como resistem e continuam, mesmo depois de verem desmoronar os seus sonhos, como tentam dar a volta ao problema e lidam com a falta de dinheiro, os telefonemas de pressão, as penhoras dos seus bens. A ‘personagem’ que abre e fecha o filme é paradigmática, porque parece uma história de amor que correu mal. Apaixonou-se, comprou a casa dos seus sonhos, o marido perdeu o emprego, descontrolou-se e ela perdeu tudo. Mas não a esperança.
As pessoas aceitaram facilmente dar a cara?
Não. Foi bastante difícil no início, porque existia um grande pudor de falar abertamente. Havia a vergonha, mas também o medo de serem julgadas. Senti que a forma como se gere o dinheiro era um maior tabu do que falar da intimidade.Mas também encontrei pessoas que viviam o problema na solidão das suas casas e precisavam de alguém que as escutasse. O casal que vive no campo quis mesmo contar a sua história. Achavam que tinham essa missão, porque se sentiam enganados e injustiçados pelo o sistema. E percebi que muita gente desconhecia como funciona o crédito, até porque é apresentado como uma coisa tão normal como ter um telemóvel.
Tocou-a esse trabalho?
Sim, foi até muito duro, porque ia filmar e encontrava um ambiente de tristeza, uma amargura que por vezes tornava o trabalho difícil.
E marcou o seu cinema?
Em vários sentidos. O facto de ter voltado ao documentário foi importante, porque mesmo na minha ficção, busco uma linha ténue que passa pela história do dia-adia. Provavelmente, a minha ficção vai ser mais impregnada por um lado mais documental.
O que a motiva no documentário?
Gosto do confronto com a realidade, embora seja mais duro. Quando fazemos uma ficção, no fim pagamos aos actores e vamos para casa.O documentário interpela-nos, acaba por implicar-nos. Temos uma responsabilidade acrescida.