O nome já vem carregado de ginga: Marcelino Sambé. Pronunciá-lo leva-nos numa dança quase tão envolvente como aquela que lhe sai do corpo franzino. T-shirt branca colada ao tronco, calças pretas justas, o jovem bailarino torce-se, rodopia, agiganta-se em movimentos que parecem torná-lo elástico e, ao mesmo tempo, tão leve que um sopro apenas bastaria para o fazer levantar voo. Neste ensaio de fim de tarde, deixa-se levar pela música que enche o estúdio 7 da Escola de Dança do Conservatório Nacional, em Lisboa, onde frequenta o 10.° ano de escolaridade e o 6.° de dança. Hoje, quinta-feira, 29 de Abril, Marcelino subirá ao palco do Teatro Camões, em Lisboa, para abrir a V Gala Internacional de Bailado e dançar As Chamas de Paris. Quando o fizer, não estará apenas a comemorar o Dia Mundial da Dança, mas também a festejar os seus 16 anos. Coincidência de datas? Há quem diga que não há coincidências…
Em cinco anos, Marcelino conquistou vários prémios nacionais e internacionais. Não houve concurso de onde não tenha voltado com um troféu, por coreografias clássicas ou contemporâneas. Só no último, já este ano, em Lausanne, não ficou classificado – mas trouxe de lá uma bolsa de estudo para a Royal Academy of Dance, em Londres, que começará a frequentar em Setembro. Quando dança, não há nada que o assuste. “Nunca achei que podia não conseguir, sempre pensei que se os outros eram capazes, eu também seria.” Fora do palco, também não lhe têm faltado desafios: a entrada numa escola exigente, a morte do pai, a ida da mãe e da irmã para o Alentejo, a integração numa nova família, as expectativas crescentes que recaem sobre ele. Mas Marcelino tem-lhes respondido à altura, sempre de sorriso na cara – o mesmo sorriso branco que se ilumina mais ainda enquanto dança.
Do kuduro ao ballet
Ninguém se admiraria que os primeiros passos de Marcelino, ainda bebé, tivessem sido logo de dança. Filho de mãe portuguesa e pai guineense, recorda-se de saltar, entusiasmado, para as rodas de dança, nas festas que se organizavam no Alto da Loba, o bairro municipal onde nasceu, em Paço de Arcos. Tinha apenas 4 anos e, muito pequenino, fazia as delícias de todos, a mexer-se e remexer-se ao som de kuduro e outras sonoridades africanas. A irmã Filomena, dois anos mais velha, bem se queixava da música que Marcelino punha na aparelhagem do quarto, para dançar, mas ninguém o convencia a estar quieto. Já a mãe, Fátima, zangava-se, mas ria-se, ao mesmo tempo, sem esconder o orgulho pelo seu menino dançarino. “Sempre foi muito babada com os filhos e dizia-nos sempre que éramos os melhores, talvez isso também nos tenha dado força e autoconfiança”, reconhece Sambé.
No centro comunitário do bairro era a mascote do grupo de dança Estrelitas Africanas, para onde entrou aos cinco anos. “Acho que foi o primeiro miúdo de quem decorei o nome, porque dava muito nas vistas, era um pirralho que sobressaía”, recorda a psicóloga Maria Coelho Rosa, que entretanto começara ali a trabalhar. É esse à-vontade e essa exuberância que hoje todos continuam a apontar como um grande trunfo de Marcelino Sambé. Quem o conhece rapidamente percebe que o rapaz nasceu para estar de bem com a vida: com bom humor, ri-se, diz piadas e timidez não é com ele. Foi Maria Coelho Rosa – ou Maria Cor de Rosa, como Marcelino pensou, durante muitos anos, que ela se chamava – que um dia lhe perguntou se não gostaria de fazer as audições para a Escola de Dança. “As pessoas que têm competências não têm que deixar de sonhar porque lhes atribuem expectativas limitadas. Quando esperam pouco de nós, é pouco provável que possamos ser alguma coisa. A minha preocupação era garantir que as competências do Marcelino fossem aproveitadas”, afirma a psicóloga do Centro Comunitário do Alto da Loba, que, de voz embargada, continua: “Eu é que agradeço ao Marcelino, muitas vezes, porque, de cada vez que tenho uma notícia dele, isso faz-me acreditar que o que faço aqui vale a pena.”
A ideia de ir para uma escola como a da série Fame agradou-lhe. Com a ajuda da Câmara Municipal de Oeiras, comprou o equipamento necessário e, quando deu por ele estava com “roupinha de ballet”… “Ballet?!”, começou por estranhar. “Não sabia nada de dança clássica. Só sabia fazer a espargata. Pensei ‘e agora?’ Mas imitei o que os outros faziam e entrei com 12 valores.” Foi na altura das audições que conheceu Telmo Monteiro, três anos mais velho, seu vizinho, primo de um amigo e aluno da Escola de Dança (haveríamos de ouvir falar nele quando foi estudar para Moscovo) e que hoje está no American Ballet Theatre em Nova Iorque. Entusiasmado com Marcelino, Telmo passou as férias de Verão a iniciar o mais novo nas lides da dança clássica. “Pôs-me a fazer pontas, para ganhar o cou-de-pied, ralhava comigo para fazer melhor. Eu copiava tudo o que ele fazia e queria fazer tudo como ele”, conta Marcelino. Leide, a mãe de Telmo, ainda se lembra dos gritos de drama que vinham do quarto do filho: “Ai, ai, que ele está a bater-me!”, berrava Marcelino de cada vez que Telmo lhe dava com o chinelo nas pernas. Às vezes, muito curiosa, não resistia a espreitar pelo buraco da fechadura da porta e o que via era sempre o mesmo: ou estavam a dançar ou estavam de olhos colados na televisão a ver DVD de dança. Passavam tardes inteiras assim, até Marcelino saber todos os nomes das companhias e dos bailarinos.
“Quando entrei na escola, já tinha alguma noção do que ia ser, o Telmo avisou-me que não era um mundo de rosas e que ia ter de trabalhar muito”, diz. Hoje, corre, todos os dias, entre os dois edifícios da Escola de Dança, no Bairro Alto, em Lisboa, sem se queixar. De manhã, tem as aulas curriculares de qualquer aluno do 10.° ano, e, à tarde, sucedem-se as aulas e os ensaios de dança, quase sem intervalos, muitas vezes até perto das oito da noite. “Só uma paixão justifica um esforço assim”, aponta a professora Paula Bárcia.
Arte no corpo
No primeiro ano, o despertador de Marcelino soava todos os dias às cinco da manhã, tal era o entusiasmo do rapaz. Depois, corria para casa de Telmo, para o acordar. “Tocava à campainha e ainda estávamos todos a dormir, até tinha de ralhar com ele”, lembra Leide, que hoje confessa ficar de lágrimas nos olhos quando vê Marcelino dançar. “O Telmo ia tomar banho e ele ficava do lado de fora da porta da casa de banho e não se calava um minuto, sempre a falar disto e daquilo da dança!” Dali, desciam os dois, a pé, até à estação de Paço de Arcos, para apanharem o comboio para Lisboa e do Cais do Sodré seguiam, de novo a pé, para a escola. “O Marcelino esteve eufórico, pelo menos, durante dois anos. Era tudo uma maravilha para ele, fazia tudo com satisfação, alegria e empenhamento”, nota Paula Bárcia. Foi essa excitação que o ajudou a superar a doença prolongada e a morte do pai, pouco depois de ter começado as aulas. Isso e um núcleo afectivo familiar forte, sublinha quem o conhece. Afinal, onde podia escassear o dinheiro, sempre abundara o amor.
Não demorou muito até Marcelino dar nas vistas. “Quanto mais não fosse pelo gosto pela dança e por andar sempre por aí nos corredores aos pulos e aos saltos”, comenta o director da Escola de Dança, Pedro Carneiro. “Foi logo um sururu no meio dos professores”, recorda a professora de dança contemporânea, Catarina Moreira. “Ele não tinha experiência, mas tinha percepção do que se pedia e conseguia transpor isso para o corpo, é aquilo a que chamamos inteligência. O que mais me marcou foi o sorriso dele a dançar, a alegria, o brilho”, continua. Correu tão bem que, cinco meses depois do início das aulas, Marcelino entrou no seu primeiro concurso de dança, no Algarve. E foi certeiro: ganhou o primeiro lugar. “Nem queria acreditar. Pensei. é isto mesmo que quero fazer, é isto mesmo que devo fazer, vou conseguir!”, revela.
Os concursos haviam de se suceder. No segundo e no terceiro ano, repetiu a dose no Algarve. Voou até Nova Iorque (foi a primeira vez que saiu de Portugal) e, como prémio, dançou numa gala internacional, onde actuaram os grandes nomes da dança; depois, em Pequim, foi o vencedor em dança contemporânea; mais tarde, em Berlim, recebeu o Grand Prix; regressou a Nova Iorque para ficar em primeiro lugar e voltar a dançar na mesma gala; provou em Moscovo, no Teatro Bolshoi, que não havia melhor que ele. Um a um, os prémios foram-lhe dando confiança para continuar e fazer melhor. Hoje, todo ele é dança. Fala do perfeccionismo de Rudolf Nureyev, elogia Alla Sizova e Ekaterina Maximova, enaltece Fernando Bujones (“é o meu ídolo, um bailarino 100%, aquilo é que era arte”), aponta o dedo a quem se perde na técnica e se esquece do mais importante. “Ter um bom corpo não quer dizer nada se não houver coração. A dança é uma arte e acho que isso se está a perder. Muitas vezes, olho para as bailarinas e desiludo-me, porque é só técnica. A arte que sinto dentro de mim é que me distingue”, afirma, com um brilho nos olhos.
Talvez seja isso que faz com que o aplaudam de pé quando dança, que gritem pelo seu nome quando entra em palco, que lhe digam que nasceu para dançar ou que nos bastidores lhe venham pedir autógrafos. Apesar de extrovertido, encolhe-se sempre com os elogios e fica quase sem mais palavras do que um tímido “obrigado”, mas há uma frase de que nunca se esquecerá, dita pela ama do seu herói Bujones: “Tu és igual a ele!” No Facebook, tem cerca de 800 amigos, muitos que adicionou depois de lhe terem enviado uma mensagem a dizer “gosto tanto de te ver dançar”.
Misha, professor russo na Escola de Dança, fala em dom. “Não há muitos bailarinos como ele. Se ele trabalhar muito, com a ajuda dos professores, será mágico”, garante. Para Catarina Moreira, “Marcelino é um performer nato. Chega e defende o que tem que defender, nem que seja uma queda. Já nasceu com aquilo, é muito natural e sensitiva a dança dele. Tem muita emoção, tem sangue quente, tem fogo. É um tcharan que não se descreve”. Elogios que podiam “estragar” um miúdo de 16 anos, mas que Marcelino Sambé tem sabido ouvir como ninguém. Numa coisa todos concordam: se, às vezes, pode ter “ataques de vedetismo”, não são nem metade do que têm alguns dos seus colegas quando conseguem metade do que ele já alcançou. E, aos 16 anos, não se pode esperar maior maturidade – afinal, Marcelino é um adolescente como outro qualquer: distraído, desorganizado, “um pouco vaidoso” e de olho nas meninas… Um rapaz que, no Facebook, é fã de dança clássica ou do bailarino Carlos Acosta, mas também diz gostar de bolachas Oreo, da marca Chanel, de Coca-Cola ou do Dragon Ball.
Nova família
Quando, há três anos, a mãe de Marcelino refez a sua vida e se mudou para o Alentejo, nunca se pôs sequer a hipótese de Marcelino a acompanhar, como fez a irmã. Custou-lhe, mas não podia abandonar a escola de dança. Depois de algumas experiências desagradáveis noutras casas, entrou finalmente naquilo a que hoje chama a sua “outra família”. Fernanda e Manuel Barroso receberam-no nas suas vidas, depois de o terem conhecido no final de um espectáculo onde participou a filha Maria, um ano à frente de Marcelino na escola. “Ganhei quatro irmãos, um pai, uma mãe, duas avós…”, diz o bailarino, que hoje vive na Póvoa de Santa Iria. Lá em casa, garantem, Marcelino tornou-se um deles. “É como um filho e nem podia ser de outra forma. Não há cerimónias. Tenho de me sentir bem em casa e ele também”, afirma Fernanda Barroso. Para a filha Maria, não é apenas um amigo ou um irmão: “É o meu ídolo. Um dia, gostava de atingir o patamar dele.” Trocam opiniões sobre dança e Maria não poupa nos pedidos de correcções às posturas – mesmo que, muitas vezes, nem precise, já que, como diz Marcelino, “ela é uma excelente bailarina” (em Setembro, há-de ir, com uma bolsa, estudar para Estugarda).
Sempre que pode, a mãe de Marcelino vem ver os espectáculos do filho. E não é pela distância que perde as suas preocupações maternas. “Conto-lhe que ganhei um prémio e ela diz: ‘parabéns, mas, olha, estás a alimentar-te bem? E não andas muito cansado?'”, conta Marcelino, a rir. As saudades vão-se matando nos espectáculos e pelo telefone. Pode ser que, um dia destes, Fátima adira ao Skype, onde Marcelino fala com os amigos que vai fazendo nos concursos internacionais e com os que, como Telmo Monteiro, ficaram distantes. Em breve, também ele estará longe, em Londres, pronto a vencer mais um desafio. “Às vezes penso: ‘Se não tivesse entrado no Conservatório, o que seria da minha vida?’.” Se tudo correr como deseja, conseguirá lugar numa grande companhia de dança, daquelas que lhe permitirão dançar repertório clássico e contemporâneo. A psicóloga Maria Coelho Rosa não duvida que, um dia, Marcelino consiga realizar esse sonho. “Não pondo em causa o apoio que tem tido, o sucesso vem dele, que é altamente lutador. O Marcelino está onde está porque tem competências para isso e se esforça. E isso é o mais importante: que ele não se esqueça que são coisas que estão dentro dele. E que pode lutar por ser o que ele quiser.” Quando hoje e amanhã subir ao palco do Teatro Camões, Marcelino Sambé vai confirmar, uma vez mais, que nasceu para a dança. Exactamente num dia 29 de Abril.