O sucesso dos Amália Hoje revelou-o a um público que nunca o descobriria no mundo negro do heavy metal. Acabado de regressar de uma longa digressão pelas Américas, o líder e fundador dos Moonspell fala da sua vida e revela alguns segredos da banda rock portuguesa mais bem sucedida além-fronteiras
Bem-vindos ao Inferno.” Assim nos recebeu Fernando Ribeiro à chegada ao estúdio, em Olival Basto, arredores de Lisboa.
É aqui que os Moonspell, banda com centenas de milhares de discos vendidos e espectáculos esgotados um pouco por todo o mundo, tem a sua base. “É a nossa casa”, corrige Fernando Ribeiro, 35 anos, que, nesse dia, ultimava o concerto do fim-de–semana seguinte, na FIL, em Lisboa, antecedido de um dia dedicado ao heavy metal, com conferências, exposições e exibição de filmes. “Um reencontro com os fãs nacionais” (estiveram lá mais de 4 mil), como o próprio explicou, após mais uma longa digressão que os levou a países como o Equador ou a Venezuela. Longe vão os tempos em que percorriam a Europa numa carrinha apertada, sem dinheiro para comer.
Como é que o heavy metal entrou na sua vida?
Devia ter aí uns 12 ou 13 anos, quando comecei a ouvir os Whitesnake ou os Iron Maiden. Mas o verdadeiro clic coincide com a minha entrada na escola secundária, quando temos de escolher a nossa tribo. Foi então que cheguei a coisas mais underground, como os King Diamond.
E o que o levou a optar por essa tribo, conotada com uma certa marginalidade, e não por outra?
Foi o instinto. É verdade que havia algum preconceito em relação ao metal que, no entanto, tinha mais fama que proveito. A sua estética pareceu-
-me mais real, os metaleiros mantinham-se fiéis à tribo, não mudando conforme as modas.
Foi mais por uma questão musical ou de estilo?
As duas. Lembro-me de um dia estar na praia, na Lagoa de Albufeira, e, ao fim da tarde, ver passar um casal de metaleiros. Uma miúda muito gira, de cabelos compridos, com um rapaz cheio de pinta, de calças de ganga, botas e um colete com um dorsal do Ronnie James Dio, que ainda hoje é um dos meus cantores favoritos. Foi algo muito forte, em termos de apelo visual, fez-me pensar que era uma estética com muito estilo.
O que é que os seus pais fazem?
Agora, estão reformados, mas a minha mãe era embaladora de medicamentos, numa farmacêutica, e o meu pai era técnico de móveis, na Regisconta. Não tinham qualquer ligação às artes…
Como é que eles reagiram a uma estética tão agressiva e mal-afamada como a do metal?
Mal, claro [risos]. Costumo dizer que, felizmente, reagiram mal. É bom os pais apoiarem os filhos, mas também é bom que os limitem. Sempre acreditei no conflito entre gerações, que nos leva a rebelarmo-nos contra os pais. Era o cabelo comprido, eram as roupas pretas, os fins-de-semana passados a ler e a ouvir música, em vez de ir jogar à bola, como faziam os outros rapazes da minha idade. Acho que, no fundo, os meus pais me achavam um bocadinho nerd. Sempre fui diferente dos meus irmãos – tenho um irmão mais novo e uma irmã mais velha – e o metal só veio acentuar essas diferenças. Houve uma reacção negativa que não levo a mal: se tivesse a formação dos meus pais, também não ia querer ver o meu filho numa banda de metal. Esse preconceito foi-se alterando e, hoje, estão ambos superorgulhosos com os Moonspell.
Quando é que decidiu ser músico?
No final dos anos 80, quando fizemos uma fanzine sobre metal. Éramos uma espécie de jornalistas amadores e chegámos a entrevistar algumas bandas importantes, como os Paradise Lost ou os Bathory. Esse convívio com a realidade do metal underground internacional despertou em nós a vontade de ter uma banda.
Na altura, chamavam-se Morbid God…
Sim, mas não tocávamos nada [risos]. Só mais tarde, quando mudámos o nome para Moonspell, em 1992, com a entrada do Mike e, depois, do Pedro e do Ricardo, é que demos o salto, em termos musicais. Eu aprendi a cantar e a vociferar, porque foi esse o lugar que me destinaram na banda. Como já tinha alguns dotes literários e escrevia a maior parte dos artigos da fanzine, comecei a fazer também as letras, mas a nossa experiência era nula. O elemento mais evoluído que trouxemos para a banda, no início, foi o Mike Gaspar (baterista), que era um miúdo mas já com uma técnica muito elevada. O Pedro Paixão (teclista e guitarrista) aprendeu a tocar nos Moonspell e o Ricardo Amorim (guitarrista) só chegou mais tarde, mas tinha um talento em bruto que foi evoluindo com a banda. Eu, como era e sou um bocado ignorante em termos musicais, fui-me adaptando às situações. Conforme eles iam compondo e necessitavam de uma voz mais cantada ou mais gritada. Nunca tive a intenção de ser músico… Aliás, muito mais do que sermos músicos, queríamos era pertencer a esta banda específica. Se os Moonspell não existissem, nunca teria sido músico…
Transmitem a imagem de família…
Um bocado disfuncional é certo [risos], mas somos, de facto, uma família…
A vossa relação nunca chegou a um ponto de saturação, tão comum nas bandas que andam na estrada meses a fio?
Muito pelo contrário. Aliás, quanto mais convivo com outros músicos, mais me convenço de que os Moonspell são uma banda única, nesse sentido. Há um elo entre nós que considero mais forte que o familiar. Passamos mais tempo uns com os outros do que com as nossas famílias e criámos entre nós uma sensibilidade única. Soa a cliché, mas é mesmo assim.
E o Fernando Ribeiro é o chefe de família?
Pode dizer-se que sim, mas só porque a minha função na banda é pensar [risos]. Não tenho de compor, de praticar guitarra ou bateria. Tenho apenas de ler, escrever e treinar a voz, o que me dá muito tempo para pensar a banda e ter ideias. Aprendi com o meu terapeuta que tenho características de liderança sentimental. Posso ser a cara, o porta-voz ou a até alma dos Moonspell, porque estou na banda desde o início, mas não imponho nada, nem sequer me considero líder. Em termos musicais, por exemplo, não mando nada…
Qual é o seu papel na composição?
O processo de composição decorre sempre em conjunto e o meu papel, para além de escrever as letras, é arranjar um conceito. Gosto muito de pesquisar e sou muito observador. O tema Scorpion
Flower, muito importante para nós, nasceu com uma flor esmagada que vi na rua e me lembrou a forma de um escorpião…
Precisa de se afastar do grupo para criar?
Não, pelo contrário, escrevo em qualquer lado. Por exemplo, gosto muito de vir para o estúdio e escrever enquanto eles ensaiam. Houve uma vez que decidi ir para uma falésia escrever e cinco minutos depois só me apetecia sair dali e ir beber uma cerveja a qualquer lado [risos]
O que o levou a fazer terapia?
O habitual. Questões pessoais, como um divórcio. Nada que tenha a ver com a banda. O metal já é uma música suficientemente terapêutica [risos].
Uma das principais características dos Moonspell é o modo como assumiram as rédeas da vossa carreira…
Ainda hoje somos nós que fazemos tudo. Este último concerto, na FIL, e o próprio conceito de Metal Day foi tudo ideia nossa. No início, apenas fizemos o que todas as bandas andavam a fazer lá fora. Queríamos ter uma carreira sustentada, de modo a chegarmos a um maior número de pessoas e a rede construída com a fanzine foi fundamental nesse aspecto.
O nosso objectivo não era ganhar dinheiro rapidamente. Lembro-me de termos decidido, quando gravámos o primeiro disco, em 1993, fazê-lo apenas em CD. Numa altura em que ainda não havia muitos CD de metal, isso foi uma maneira de chamar a atenção. Não recebemos nenhum dinheiro, apenas 250 discos que enviámos a editoras e jornalistas de toda a Europa.
E resultou?Sim, a partir daí, começaram a chover propostas de contratos, entre eles o que nós queríamos, com a editora alemã Century Media. Hoje, ao lê-lo, percebo que foi um contrato para enganar miúdos, mas, na altura, festejámos com champanhe, porque nos permitiu fazer digressões e trabalhar com um produtor a sério. Era isso ou ficar em Portugal, num mercado limitado. A primeira vez que andei de avião foi quando fomos à Alemanha gravar o Wolfheart.
Como foi essa transição de uma realidade amadora para a indústria do metal?
Houve dois momentos marcantes. O primeiro foi a gravação do primeiro disco, com um produtor a sério. Chegámos lá com bastante humildade e vontade de aprender, mas não estávamos preparados para a frieza com que fomos recebidos. Foi preciso um grande jogo de cintura. Esse produtor chegou ao ponto de nos pedir para andarmos afastados dele, porque só estava habituado a trabalhar com bandas nórdicas e não queria ser visto com um grupo de morenos… Hoje já mudou de atitude, porque, entretanto, nos tornámos bem mais importantes que ele [risos].
E o segundo momento?
A primeira digressão, em 1995. Chegamos à Alemanha, dão-nos a chave de uma carrinha para a mão e dizem-nos que o primeiro concerto é em Glasgow, na Escócia. Sentimo-nos atirados aos lobos. Íamos só nós e um técnico holandês, com quem acabámos por criar uma relação muito má. Imagine-se seis tipos a viajarem e a dormirem numa carrinha, durante semanas, às vezes a terem de roubar comida em estações de serviço, com concertos em locais tão distantes como Barcelona ou Oslo…
Alguma vez pensaram em desistir?
Não, porque vemos as digressões como um investimento necessário. Passar por todo esse folclore do rock’n’roll deu-nos uma grande experiência. Partimos para essa primeira digressão como uma banda desconhecida e regressámos, sete semanas depois, com 50 mil discos vendidos. Quando voltámos à Alemanha, o presidente da editora foi receber-nos pessoalmente. Ainda hoje funcionamos um pouco assim. Cerca de metade do ano é passado na estrada…
E continuam a gostar?
Hoje, ainda gostamos mais, porque já sabemos como as coisas funcionam. A nossa primeira digressão como cabeças de cartaz foi em 1998. Quando chegávamos ao camarim, havia ostras e champanhe e nós não fazíamos ideia por que éramos tão bem tratados. Nessa altura, ainda vivíamos com os nossos pais e essa digressão acabou por funcionar como uma espécie de emancipação. Questionávamo-nos: então vendemos dezenas de milhares de discos, esgotamos os concertos e não temos dinheiro para nada?! Hoje, isso não acontece, mas a estrada continua a ser importante, porque já fizemos a curva da geração com os nossos fãs. Há pessoas que nos começaram a ouvir agora e nunca nos viram ao vivo. Há todo um ânimo novo que é muito importante para a banda. E continua a dar-nos muito gozo tocar em locais novos, como aconteceu em Marrocos, onde actuámos num estádio completamente cheio. O ano passado, fomos, pela primeira vez, a países como a Bulgária e a Macedónia. E, este ano, já temos convites para Israel, Líbano e Dubai.
Têm noção, nos vossos espectáculos, dessa renovação dos fãs?
Sim, notámos isso em 2001, com o [disco] Darkness and Hope, porque começámos a ver imensa gente nova, nos concertos. Em 2006, com o Memorial, e agora novamente com o Night Eternal, em especial por causa do tema Scorpion Flower, que chegou a muita gente. Lembro-me de estar numa sessão de autógrafos, na Finlândia, e aparecerem dois miúdos, com cerca de dez anos que, confesso, tratei como… miúdos. Até ao momento em que um deles me perguntou se íamos tocar o Alma Mater ou o Wolfshade, do nosso primeiro álbum, lançado quando eles ainda nem eram nascidos. Foi uma surpresa e uma lição, porque eram conhecedores, tal como alguém de 30 ou 40 anos, e mereciam
ser tratados como tal…
Como é a vossa relação com os fãs?
Sempre cultivámos uma certa proximidade com os fãs porque, no fundo, somos como eles. Lembro-me de ir ao concerto dos Iron Maiden, e não parar de dar autógrafos, mas também não foi por isso que fui para a zona VIP, que, aliás, nunca frequento. Nem sequer pela cerveja à borla: os fãs pagam-me muitos copos [risos].
Participou no projecto Amália Hoje, que lhe trouxe uma projecção muito para além do universo do metal. Como vê o sucesso que o disco alcançou?
É um balanço que ainda está por fazer. Foi positivo para todos, e ultrapassou o âmbito das nossas próprias bandas. Há pessoas que ouvem os Hoje e não sabem quem são os Moonspell ou os The Gift. De qualquer forma, as nossas prioridades estão muito bem definidas e se os Hoje ainda existem é apenas devido ao interesse do público…
Outra consequência dessa exposição foi o interesse pela sua vida privada, nomeadamente as notícias que davam conta da sua relação com a Sónia Tavares…
Não dou muita importância a isso. Os
Moonspell não vendem mais por aparecerem nas revistas cor-de-rosa. Eu estou nos Hoje porque sou vocalista dos Moonspell, essa é que é a verdade. O meu ambiente é o metal e os concertos no estrangeiro. Quanto às revistas, é inevitável pagar esse preço, mas, enquanto houver um Angélico e uma Rita Pereira, ninguém quer saber do Fernando Ribeiro e da Sónia Tavares…
O que teria sido se não fosse músico?
Professor de Filosofia, que era o que eu estava a estudar na Faculdade de Letras, em Lisboa, para onde entrei com 18 valores. Apesar de não ser nenhum betinho, sempre fui muito bom aluno e ensinar era a minha vocação, muito mais do que ser músico. Já dava explicações desde o secundário e, com o tempo, fi-lo de um modo quase profissional. As explicações eram a minha fonte de rendimento para investir na banda. Hoje, consigo ver uma ligação entre as duas actividades: há um trabalho de comunicação, um palco, uma plateia. E há, sem dúvida, uma aprendizagem mútua, na relação entre os músicos e os fãs, que lembra muito o que acontece numa sala de aula.