“Um retrocesso na gestão de resíduos.” É assim que Carmen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus, resume a proposta do Governo de alteração à lei. Se forem aprovadas as mudanças, promovidas pela Secretaria de Estado do Ambiente, materiais recicláveis passam a poder ser depositados em pedreiras, desde que não sejam considerados substâncias perigosas.
Para os ambientalistas, a proposta causa dois problemas: reduz a taxa de reciclagem, porque fica mais barato enviar o lixo para aterro do que separá-lo, tratá-lo e reciclá-lo, e pode vir a provocar a contaminação de águas subterrâneas, uma vez que muitas pedreiras não estão impermeabilizadas.
“Sem essa possibilidade legal, já temos as pedreiras a receberem solos contaminados de forma encapotada, já que a fiscalização é praticamente inexistente. Imagine-se quando for legal”, alerta Carmen Lima. A maior preocupação é com os chamados RCD (Resíduos de Construção e Demolição), que podem estar contaminados com “tintas, hidrocarbonetos e até amianto” – abaixo dos níveis considerados perigosos pela lei, mas que se vão acumulando com as sucessivas cargas a serem depositadas. “Daqui a 20 anos, vamos estar a tentar resolver um problema ambiental de solos e aquíferos contaminados.”
Levar para pedreiras é “reciclagem”
O artigo 27º da alteração ao Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro, refere como meta, até 2020, “um aumento mínimo para 70%, em peso, relativamente à preparação para a reutilização, a reciclagem e outras formas de valorização material, incluindo operações de enchimento que utilizem resíduos como substituto de outros materiais, de RCD não perigosos”. Ou seja, em teoria, deixa de ser necessário reciclar – depositar materiais recicláveis em pedreiras entra para as contas.
Carmen Lima acusa o Governo de fazer batota, ao usar as pedreiras para cumprir a meta de 70% de reciclagem imposta pela União Europeia (renaturalizar pedreiras é considerado “valorização paisagística”). “É assim que vamos chegar aos 70%, contabilizando essa valorização. Pelas nossas contas, a reciclagem efetiva ronda os 30%. Nos outros países, a meta não foi atingida com enchimento de pedreiras. Para as pedreiras deveriam ir apenas solos de escavação.”
Para Rui Berkemeier, especialista em resíduos da ZERO, “o Ministério do Ambiente e da Ação Climática está a incentivar a colocação de materiais recicláveis em pedreiras, onde a taxa de gestão de resíduos é zero”. “Os RCD são perfeitamente recicláveis. O ministro do Ambiente gosta muito de falar de economia circular e depois faz isto: um despejo encapotado de resíduos, mascarado de recuperação paisagística.”
Ambas as associações temem que esta proposta de alteração à lei venha prejudicar ainda mais a reciclagem em Portugal, que já tem taxas efetivas muito baixas, comparadas com as dos parceiros europeus. “Penaliza quem recicla, porque ainda tem de gastar dinheiro a fazer a separação”, diz Rui Berkemeier. “Empresas fizeram grandes investimentos para tratarem resíduos e para se licenciarem, e agora vão competir com pedreiras”, acusa por seu lado Carmen Lima.
Outro dos problemas apontados à proposta do Governo é a manutenção do valor-limite atual dos hidrocarbonetos admitidos em aterros simples. A média europeia é de 40 mg/kg. Em França, por exemplo, o limite é 50, na Alemanha, 30, no Luxemburgo, 10, e na Dinamarca, o país mais restritivo, é 4. Em Portugal, se for aprovada a lei, o valor continuará em 100 mg/kg.