“Isto é coral vermelho!” A segurar uma pequena amostra do que foi recolhido no fundo do mar, é assim que Joana nos apresenta aquele bem precioso, a rama que os pescadores algarvios costumam trazer agarrada às redes, sem saberem que há quem pague milhares para ter uma joia daquela cor. “Aqui só soubemos da sua existência depois de anunciarem a detenção de uma rede ilegal”, conta a bióloga, a lembrar a notícia de há dois anos, segundo a qual a polícia marítima apanhou três portugueses e três espanhóis com 32 quilos do precioso coral que, no mercado paralelo, pode render mil euros por quilo.
Com muita calma, Joana Ruela Boavida, 30 anos, bióloga com especialização em ecologia e conservação marinha, investigadora do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, está a guardar bocadinhos do bicho (“Sim, é um ser vivo…”), para servirem de amostras, em frasquinhos com várias etiquetas, explicando que os corais são bons indicadores ecológicos: “Fornecem dados sobre salinidade, temperatura, luminosidade, movimento das águas, profundidade… ” Cientista no Deep Reefs, projeto que procura elaborar o mapa da biodiversidade dos habitats marinhos de profundidade, Joana afirma que o Corallium rubrum, de seu nome científico, vive, sobretudo, em águas profundas do Mediterrâneo e do Atlântico, numa área mais próxima do Estreito de Gibraltar.
Estamos no convés do Pacific Provider, o navio que trouxe a equipa de mergulhadores da Global Underwater Explorers (GUE), uma organização não-governamental norte-americana, para irem mais fundo naquele mar. “Mergulham até aos 90, 100 metros. Eu não vou além dos cinquenta. Faz toda a diferença”, nota a bióloga portuguesa, acrescentando que até trouxeram dois minissubmarinos amarelos, que não foram até ao fundo. “Como tem muitos nutrientes, a água, aqui, não é tão límpida”, explica Joana, “Mas também é por isso que a nossa costa é tão boa para pescar.”
Dias depois, o barco há de sair para o Mediterrâneo mas a sua passagem pelo Algarve é já um marco para a vida de muitos investigadores. “Recolheram imagens que vão servir como material de trabalho, durante anos, para especialistas das mais diversas áreas”, diz Joana, antes da despedida, ela que encantou os fundadores da GUE, na Conferência Global de Mergulho, em dezembro passado, em Portimão, quando apresentou a proposta de varrer o fundo do mar do Algarve, em zonas nunca visitadas por ninguém. O objetivo é estabelecer linhas fixas, monitorizar a longo prazo e verificar se há ou não alterações do ecossistema, provocadas pela pesca, poluição, aumento da temperatura. “Nem queria acreditar, mas trocámos uns emails durante este tempo e cá estamos!”
Em mundos nunca vistos
Fundada em 1998, em High Springs, na Florida, por Jarrod Jablonski, com o intuito de promover a educação, exploração e conservação dos ambientes marinhos, a GUE quer ser uma seguidora da Cousteau Society, no seu compromisso com o mar do planeta. JJ, como lhe chamam os amigos, tem 45 anos e é um pioneiro do mergulho técnico, em profundidades raras, e numa abordagem quase holística: conduz uma equipa com treino especializado até aos 120 metros de profundidade e manobra submarinos a operar até 300 metros abaixo da superfície do mar.
É esta equipa que lança o Projeto Baseline, em 2009, uma iniciativa a decorrer em 23 países, com o objetivo de mapear e documentar recifes profundos e as formas de vida que abrigam. Este ano, saíram dos EUA no início de junho e, depois de um primeiro mergulho nos mares das Bahamas, seguiram para os Açores e, depois, para o Algarve, sempre em parceria com equipas de cientistas locais.
No mar açoriano, documentaram, pela primeira vez, ecossistemas marinhos únicos, com especial destaque para uma parede enorme de coral negro, a sul da ilha do Pico, que os cientistas sabiam existir mas que nunca tinha sido descrita. Em Sagres, aventuraram-se na Catedral, uma gruta submersa, onde existem corais e esponjas marinhas que servem como local de refúgio e maternidade para muitas espécies. E, em Portimão, fizeram-se ao mar, a 10, 12 milhas da costa, mais ou menos em frente da Ponta da Piedade, a praia que, de tempos a tempos, alguém classifica como “provavelmente a mais bonita do mundo”.
“É uma paixão movida por filantropos”, revela Jablonski, contando que estas missões são possíveis porque um grupo de amigos e apaixonados pelo fundo do mar juntou o material e máquinas que já tinha e as disponibilizou para aquele projeto. Depois, foi arranjar parceiros para a parte da investigação e é aqui que entra a equipa de Joana Boavida.
“Encontrámos um recife que abriga uma espécie muito sensível. Sabemos que os corais demoram a crescer e a recuperar de impactos destrutivos. E esta zona foi muito devastada pelas redes”, conta-nos a bióloga, apontando o dedo ao Rapa, uma arte de pesca que ali se pratica, nome bastante indicativo do que faz ao mundo marinho: “Rapa tudo!” Com a monitorização cresce a esperança de preservar esta população única, porque, ainda assim, os recifes têm paredes luxuriantes desse misto dos corais com estrelas-do-mar, lagostas e uma grande variedade de peixes. Além disso, o tamanho de alguns destes corais (cerca de 20-25cm de altura) é muito superior ao que se encontra no Mediterrâneo, cortado devido à sobrepesca para joalharia. “Como sabemos que cresce 1 mm por ano, pensamos que estes aqui devem ser muito antigos e só não são maiores porque foram partidos pelas redes e pela apanha ilegal. Por isso, queremos também propor a criação de uma área marinha protegida.”
Em nome da Ciência
Ao lado do amigo de longa data Tom Kincaid, com quem mergulha há mais de 20 anos, e de outros dois mergulhadores, Graham e Andreas, Jarrod Jablonski desapareceu no azul daquele mar a meio da manhã, e além de umas boias, que haviam de vir à superfície ao longo do dia, só muito mais tarde saberíamos por onde andaram, ao ver as imagens do que filmaram lá no fundo.
Como o resto da tripulação, Joana aguarda, no navio, o regresso dos quatro fantásticos mergulhadores, apesar de ser quem melhor conhece o seu percurso, porque foi ela quem lhes deu o azimute, as coordenadas para o mergulho. A espera é dura, os homens só voltam ao fim de algumas horas.
A explicação para tanta demora até é simples: por cada 15 minutos que passam no fundo, têm de fazer uma hora de descompressão. Ora, com uma hora lá no fundo, é fazer as contas: saíram às 11 da manhã e regressam às 5 da tarde. Mas vêm felizes e contentes, com sorrisos largos, a atropelar os detalhes da aventura.
“Está cheio de vida lá no fundo!”, exclamam. “Imenso coral vermelho. Vais conseguir identificar muitas coisas, Joana”, garantem, enquanto a bióloga vai colocando hipóteses para explicar o que acontece: “Será que já existiu perto da costa, mas foi sucessivamente arrancado, sobrando aquele onde as redes arrastadeiras da pesca não chegam? Ou foi avançando para profundidades maiores para sobreviver, sendo geneticamente diferente do que cresce no Mediterrâneo? ” A beberem-lhes as palavras, os mergulhadores partilham o entusiasmo dela, apesar da água gelada, no fato inundado, e de não terem conseguido manter-se juntos durante todo o tempo em que ficaram lá no fundo.
“Ah”, exclama Jablonski, “Tudo em nome da ciência!” Já a aventura de Joana, e dos seus colegas do Centro de Ciências do Mar, essa, segue dentro de momentos.
CONHECER O CORAL VERMELHO – CORALIUM RUBRUM
- Vive entre os 10 m e os 300 m de profundidade
- Tem grande longevidade e cresce, em média, apenas um milímetro por ano
- É conhecido como o Ouro Vermelho do Mediterrâneo. No Atlântico, foi encontrado apenas junto a Gibraltar e há relatos de perto de Cabo Verde. No Pacífico, o coral conhecido é de outras espécies
- É um organismo vivo muito vulnerável que faz parte da lista do Anexo V, da Directiva Habitats da União Europeia, em que figuram as espécies cuja captura e exploração pode ser objeto de medidas de gestão
- Soube-se que havia coral vermelho na costa algarvia, depois da notícia da detenção de uma rede de captura ilegal que tinha equipamento para mergulho a 90 metros de profundidade
- Os cientistas vão agora estudar se já existiu perto da costa algarvia e foi todo arrancado ou se migrou para mar alto para sobreviver na região
- Além da monitorização do ecossistema, há a intenção de propor a criação de uma área marinha protegida