Mais um tiroteio, mais uma jornada de luto e mais declarações do costume. Após o massacre na escola de Uvalde, no Texas, o mais grave da última década, a história voltou a repetir-se e a questão é sempre: como é possível? A resposta é muito simples e do conhecimento de todos: os Estados Unidos têm demasiadas armas. Em rigor, são mais de 400 milhões, enquanto o país tem apenas 331 milhões milhões de habitantes.
Estima-se que mais de um terço da população adulta lida quotidianamente com pistolas e revólveres, espingardas e metralhadoras, o que criou as condições para a sociedade americana viver num ambiente que alguns analistas já comparam a uma guerra civil. As estatísticas retratam o fenómeno de forma cruel.
Só desde 1 de janeiro, já se registaram, pelo menos, 212 tiroteios em larga escala (mass shootings). No total, em apenas cinco meses, estamos a falar de 6700 mortos e 14 mil feridos, de acordo com a Gun Violence Archive, uma ONG que colige este tipo de dados. Se juntarmos os suicídios, homicídios e outros incidentes com armas de fogo, os valores mais do que duplicam no mesmo período.
A situação tem vindo a agravar-se e, como afirmou o Presidente Barack Obama em 2012, na sequência do massacre de Sandy Hook, em Newtown, Colorado, os principais visados são também os “mais inocentes” – por serem crianças e adolescentes, apanhados no fogo cruzado que se abateu nas suas escolas. O FBI, num relatório divulgado na passada semana, revelou que os ataques a tiro “aumentaram 96,7% desde 2017”. A CNN também fez contas e chegou à conclusão que, desde janeiro, houve 39 tiroteios em infantários, liceus e universidades. Nos últimos quatro anos, 119 estabelecimentos de ensino foram palco de autênticas “carnificinas”, para usarmos a palavra ontem escolhida por Joe Biden para descrever o que aconteceu em Uvalde.
Como foi possível que Salvador Ramos, o jovem autor dos crimes de ontem, tivesse acesso a uma ou mais AR-15 para fazer o que fez? A resposta é também muito simples. No Texas, como em duas dúzias de outros estados americanos, não é possível adquirir bebidas alcoólicas com menos de 21 anos, mas é possível, aos 18, comprar nas calmas uma espingarda automática e vários outros brinquedos do género.
Para tudo ser ainda mais paradoxal, apenas 52 por cento da população dos EUA defende a adoção de medidas legislativas para restringir o acesso às armas, de acordo com o estudo mais recente da Gallup. Como se não bastasse, a produção de armamento e de munições tende a subir e quase triplicou desde o início do século, com o pormenor das vendas terem igualmente disparado com a pandemia, segundo um relatório divulgado pelo ministério da Justica a 17 de maio. Pormenor: neste documento e neste valores não entram sequer as armas classificadas como “fantasmas” – as importadas de forma ilícita, as adquiridas online e as criadas através de impressoras 3D.
“Não podemos perder nem mais um minuto. Temos de agir e já”, afirmou Joe Biden, após o massacre num supermercado em Boulder, no Colorado. Entretanto, passaram 14 meses e nada se fez em Washington D.C. O Presidente e o Partido Democrata controlam a Câmara de Representantes e o Senado mas os republicanos conseguem sempre bloquear qualquer iniciativa que tenha por objetivo por em causa a sacrossanta segunda emenda da Constituição. Ou seja, o famoso direito à legítima defesa e à posse e porte de arma, consagrado na lei fundamental desde 1791.
Desde então, o Tribunal Supremo pronunciou-se várias vezes contra as alterações a esse princípio que permanece intocável e que é, para o comum dos cidadãos, algo tão importante como as outras liberdades individuais. As poucas excepções a esta regra magna resultaram de circunstâncias trágicas. Em 1934, foi aprovado o National Firearms Act, um decreto resultante da tentativa de homicídio do Presidente Franklin Delano Roosevelt, e que determina o registo obrigatório das principais armas de fogo, nomeadamente as automáticas. Em 1968, através do Gun Control Act, este registo tornou-se ainda detalhado e apertaram-se as regras de comercialização devido aos atentados contra os irmãos Kennedy e Martin Luther King. Em 1993, foi a vez do Brady Handgun Violence Prevention Act, que obriga os armeiros a verificar os antecedentes – criminais ou outros – dos seus clientes, destinado a evitar que indivíduos perigosos adquirissem metralhadoras e material equivalente. Os resultados estão à vista. Em 2008, a mais conhecida e influente organização pró-armas, a NRA (National Riffle Organization), gastou mais de 40 milhões de dólares para impedir que Barack Obama e Joe Biden fossem para a Casa Branca.
A melhor prova de que a NRA continua sem olhar a meios para promover os seus interesses ficará bem à vista já nesta sexta-feira, quando se realizar o seu congresso anual, em Houston, no Texas. Entre os convidados, há mais de uma centena de congressistas – Marjorie Taylor Greene, Lauren Boebert, Ted Cruz e outros que tais -, o Governador do Estado, o ultraconservador Greg Abbot, e, ainda, o maior artista da política americana. Claro, Donald Trump.