Adiar a hora de ir para a cama sem motivo é uma forma que o cérebro encontra para se desforrar das agruras de um dia de obrigações. O fenómeno intensificou-se pelos efeitos da pandemia na saúde mental. O que dizem os especialistas e como mudar o registo
Dar por si a fazer coisas que não precisa em vez daquela tarefa que tem em mãos não é estratégico, mas é humano: o corpo defende-se da responsabilidade e do esforço contornando o “obstáculo” e afastando-se dele por tempo indeterminado. Dá-se crédito à voz interna que diz “tirem-me deste filme” e segue-se o lema “perdoar o mal que faz pelo bem que sabe” (esse desvio de trajetória).
O risco de tal acontecer hoje, amanhã e depois, convertendo-se em algo crónico, é grande, como bem sabem os estudantes em tempo de exames. Porém, não falta quem feche os olhos à entrega do projeto de trabalho que era para ontem, pelo imperativo de rebelar-se, bater o pé, que traz alívio temporário mas com consequências não desejadas.
Sacrificar tempo de sono em atividades lúdicas que não se realizaram durante o dia é uma espécie de desforra do cérebro, uma compensação que sai cara à saúde
Quando este comportamento se transfere para a higiene do sono, o prognóstico não é melhor, muito pelo contrário, pelas implicações de médio e longo prazo no estado de saúde, porque não se recarregam baterias. E, contudo, é o que parece estar a acontecer com maior expressão desde que começou a pandemia, que trouxe incerteza, angústia e outras perturbações psicológicas e teve um efeito disruptor nas rotinas, agravando os problemas de sono, apelidados de “coroninsónia” (coronavírus + insónia).
A procrastinação de vingança na hora de dormir (“revenge bedtime procrastination”) alcançou visibilidade no Twitter, através do artigo de uma jovem jornalista chinesa, Daphne K. Lee, mas a expressão surgiu pela primeira vez em 2014, referindo-se à decisão de adiar – ou de sacrificar – a hora de ir para a cama em abono de atividades de lazer ou de entretenimento para as quais não houve tempo durante o dia. Porém, não se trata propriamente de uma perturbação do sono nem sequer de um diagnóstico, mas sim de uma falha na capacidade de auto-regulação: a pessoa quer dormir mas acaba por não o fazer, até porque, no final do dia, as suas competências de auto-controlo estão em níveis baixos.
“Quero a minha liberdade de volta”
Dois investigadores polacos realizaram um estudo em que compararam relatos de hábitos de sono e respostas a um questionário (Bedtime Procrastination Scale) a fim de compreender melhor este fenómeno. Verificaram que, entre os participantes, as pontuações das mulheres foram superiores às dos homens, o que não surpreende, já que são elas as mais sobrecarregadas, ainda, pela acumulação de tarefas (trabalho, família, atividades domésticas) e exigências de tempo, ampliadas na pandemia.
Os dados científicos são consensuais: insónia e sono de má qualidade são inimigos da saúde, na medida em que contribuem para uma série de complicações, sejam sob a forma de doenças cardiovasculares, diabetes e obesidade, ou depressão, ansiedade, alterações do humor e falhas de memória e dificuldades de concentração, com impacto no rendimento e na vida pessoal e familiar. A incerteza e dos dias, a ausência de fronteiras entre trabalho e lazer, e a hiper-presença dos ecrãs nas nossas vidas têm um impacto avassalador no ritmo circadiano (ou equilíbrio entre vigília e sono), a que se soma a modificação das atividades de lazer e de socialização que se tinham por garantidas.
Se formos privados, por tempo indeterminado, das fontes que promovem satisfação e amortecem o stresse, a probabilidade de desmotivar e descarrilar pelo dia fora é mais do que certa, com a agravante de poderem instalar-se “maus hábitos” na gestão dos tempos de trabalho, de lazer e de sono (a fórmula 8-8-8). Adiar o sono pode converter-se num desses hábitos se o trabalho “roubar” sistematicamente tempo ao lazer e este ficar “colado” ao tempo de sono o que, na prática, significa a sua exclusão. Esse tempo lúdico terá razões de sobra para se queixar. “Uma vida assim não é vida.” O lamento resultante de estar ausente, em falta ou de ser menorizado numa sociedade progressivamente automatizada e avessa aos chamados “tempos mortos” (leia-se, momentos para desanuviar e isentos de encargos, portanto).
Retaliar e compensar o que ficou por gozar
Num artigo da BBC refere-se que procrastinar relativamente ao sono – algo que não se faz de ânimo leve, pelas suas consequências nos dias seguintes – é uma forma de retaliar, ainda que nem sempre consciente, que o cérebro adota quando se sente “injustiçado”.
Recusar-se a ir para a cama, insistindo em navegar na internet, a consumir notícias ou a empanturrar-se com séries e jogos, mesmo quando o corpo está a cair para o lado e as pálpebras só querem cerrar-se, é a maneira de compensar a liberdade perdida, depois de um dia de trabalho maior do que devia ser, ou de uma quantidade de afazeres que tomaram de assalto o tempo destinado ao ócio. Ou à vida pessoal, continuamente sacrificada, adiada e esquecida. Assim se explica a cedência imponderada ao princípio do prazer (ou do lazer “roubado” pela ditadura do relógio), sabendo de antemão que a fatura vai chegar num futuro próximo.
Como uma criança que faz birra ou se vale de todo o tipo de artifícios a fim de prolongar a hora de ir para a cama, adultos privados da sua dose diária de gozo dão vazão aos impulsos reprimidos e fecham os olhos… mas à opção de dormir, encarada como mais uma obrigação “para seu bem”. É o sistema límbico a fazer das suas, fazendo prevalecer a emoção sobre a razão, adiando o inadiável: vinga-se, desforra-se, na tentativa de resgatar o tempo de qualidade pós-laboral que confere conforto e segurança.
Procrastinadores para todos os gostos
Carlos Fernandes é psicólogo, professor catedrático da Universidade de Aveiro e um dos primeiros investigadores do sono em Portugal, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. No seu entender, procrastinar, de dia ou de noite, é algo que tem a ver com a história evolutiva do homem, pela natureza do cérebro e a forma como o educamos.
Se uma pessoa tiver um perfil mais obsessivo, “fica ansiosa, acumula muitos dados e não consegue excluir o que é acessório para acabar uma tarefa”. Já aquela que é hiperativa “tende a ser desatenta, desorganizada e a ter dificuldade em manter o foco”. No caso de quem sofre de depressão, “a baixa autoestima, a lentificação e a falta de interesse pelas coisas” acaba por ditar o adiamento daquilo que tem em mão.
“O sistema dopaminérgico permitiu-nos sobreviver enquanto espécie, por fazermos coisas com ganhos imediatos; o córtex pré-frontal possibilita-nos pensar estrategicamente, controlar impulsos e adiar a gratificação imediata”, esclarece. Porém, é preciso não esquecer que as variáveis psicológicas também interferem no processo.
Estes perfis entram na categoria dos “procrastinadores tensos”, onde se incluem os workaholics, “que adiam o sono em vez das tarefas”. Depois há os “relaxados”, saudáveis do ponto de vista neurológico e psiquiátrico, mas que fazem da procrastinação um modo de vida. Em qualquer dos casos, adiar traz custos e há que ter consciência disso quando se opta pela gratificação imediata, deixando as emoções sozinhas ao leme.
O crítico “Fator F”
A maioria dos estudos sugerem que são cada vez menos os que dormem sete a oito horas, em média e, mesmo que o façam, nem sempre passa pelas fases de sono profundo, com ondas lentas, que têm uma função reparadora. Quando os hábitos de sono e da vigília se desregulam – o que aconteceu com mais frequência na pandemia – “perde-se o fator C (cronobiológico) e aumenta o fator F (falta de sono)”. Resultado: desperta-se cedo demais (insónia tardia), está-se sempre a acordar (insónia intermédia) ou não se consegue adormecer (insónia inicial).
“Dormir pela manhã adentro, por exemplo, pode não ser suficientemente reparador, pois entre as seis e as dez horas da manhã sobe a frequência cardíaca, os níveis de cortisol e a atividade cerebral intensifica-se no sono paradoxal (episódios R.E.M., com sonhos); acorda-se cansado e até com dores de cabeça”, observa Carlos Fernandes. Aqui chegados, é difícil fazer ‘reset’.
Os procrastinadores do sono devem ter isto em mente: “O débito de sono pela vigília acumulada aumenta a pressão para dormir e gera ansiedade, mas aí não se dorme mesmo, porque a adrenalina dificulta o processo.” Isto, sem contar com o impacto da luz elétrica e dos ecrãs, inimigos da “melatonina, libertada pela glândula pineal, que induz o sono a partir de certa hora do dia”. Isto traz “enormes implicações nas funções cognitivas e no plano psicomotor”, pelo que apetece dizer: um sono adiado é um dia estragado. O que fazer?
O docente da Universidade de Aveiro costuma sugerir aos alunos que aprendam a fazer o que muitos CEO’s aplicam no seu quotidiano: o SWOT, a sigla inglesa para “forças, fraquezas, oportunidades e constrangimentos, ou aquilo que está fora do nosso controlo”. A solução para repor a ordem do sistema está em “identificar estes quatro aspetos na sua vida, trabalhá-los, planificar micro-metas e criar micro-recompensas ao longo do dia.” Para que as noites sejam mais plenas e o tempo diurno com mais qualidade.