(Reportagem publicada a 25 de outubro de 2001)
“A América nunca conquistará o Afeganistão. Sonhar com isso é o mesmo que querer dominar o universo: é impossível.” Haji Rehman fala com determinação, rodeado por uma dúzia de homens – a maior parte de Kalashnikov em punho – que, atentamente, ouvem em silêncio as palavras do velho guerreiro. A conversa decorre no pátio da casa de um dos principais líderes talibans de Assadabad (Sueste do Afeganistão), Molvi Khan, a cerca de uma hora e meia de Jalalabad e a três da fronteira do Paquistão. A sorte está lançada. Para eles, eu sou uma paquistanesa de uma ONG, encarregada da recolha de fundos para ajuda humanitária. E integro uma equipa que está de visita ao país para se inteirar das necessidades. É-nos, pois, permitido o uso de uma câmara de vídeo, que regista todo o depoimento de Haji Rehman, bem como o dos seus companheiros. Esta é uma das regiões onde o apoio a Usama bin Laden é mais forte. Jalalabad, a cidade mais próxima, é uma das frentes da guerra. O milionário saudita esteve lá e, bem perto de nós, funcionarão alguns campos de treino da Al Qaeda.
Com a habitual barba dos guerreiros de Deus e os tradicionais schalwar kamiz (túnica) e colete, Haji Rehman segura com firmeza o microfone na mão direita, conservando na esquerda uma arma de fabrico russo. À primeira vista é o mais velho dos presentes. Uma buganvília dá uma nota colorida ao pátio, de terra batida.
A ‘aposentação’ dos americanos
Nos últimos dias, só de Assadabad partiram para a Jihad (guerra santa) cerca de 25 mil homens com idades entre os 15 e os 40 anos, dizem-me os meus guias e tradutores. Desde que os bombardeamentos americanos começaram, há três semanas, as aldeias do Sueste do país estão reduzidas a velhos, crianças e mulheres. As maiores concentrações de soldados encontram-se, naturalmente, em Cabul, Kandahar, Mazar-e-Sharif e Jalalabad.
O vídeo continua a gravar. “Com a minha idade, na América, os militares já estão aposentados. Mas, aqui, os mais velhos (e até as mulheres e as crianças) pegarão em armas se necessário. Lutaremos pelo Islão até à última gota de sangue.» Haji Rehman não tem quaisquer dúvidas. Molana Shamsher, um outro senhor da guerra, vai mais longe ao afirmar que «o Afeganistão não quer ajuda de nenhum país estrangeiro » e que «os americanos já deveriam ter aprendido com a lição dada aos russos.” A barba ruiva e o longi (turbante tradicional) negro espetado na cabeca contrastam com a brancurada veste. “Não queremos aqui a comida
envenenada dos nossos inimigos”, diz Shamsher. «Esperamos que o Paquistão nos ajude com comida e medicamentos. Só confiamos nos nossos irmãos muçulmanos e em Deus».
Apelo a que muitos paquistaneses parecem estar a responder. Horas mais tarde, em Nur Gal, depararíamos com um acampamento taliban onde muitos sacos com comida, roupa, armas e dinheiro estão a ser recolhidos para enviar para todas as zonas do país.
Molvi Khan, o dono da casa, afirma orgulhoso que três dos seus filhos partiram há algumas semanas para combater em Jalalabad. Acabou de regressar da guerra porque «a aldeia e a sua família também precisam dos homens». Por momentos, sou confrontada com a sua presença. Inesperadamente, de cara levemente destapada, ser-lhe-ei apresentada por um dos meus guias. Diz-me mesmo que devo estender a mão… Por mais estranho que pareça, algumas vezes até os talibans abrem excepções à regra, quebrando o “protocolo” mais elementar.
Viajando no tempo
É sábado de manhã. As conversas prolongam-se, o discurso sobe de tom, os espíritos animam-se. Apesar de não entender paxtune (língua falada pelas populações locais), vou percebendo que Usama bin Laden, Alá e Jihad são palavras recorrentes de todos aqueles discursos inflamados. De dentro de casa, sentada numa espécie de chaise langue colocada perto da porta e envergando uma burqa verde-azeitona, tento memorizar discretamente tudo o que vejo, enquanto bebo uma chávena de chá com leite. Como integro um grupo de quatro homens (os meus guias e tradutores), todos paquistaneses – dois dos quais conhecem perfeitamente a região e os principais líderes de Assadabad e Jalallabad -, sou acolhida com a tradicional hospitalidade local. Mas tenho forçosamente de envergar a burqa.
Enquanto observo de longe a cena que decorre no pátio, sou tomada de sentimentos contraditórios que se misturam inevitavelmente com o frenesim de ter conseguido entrar num Afeganistão desde há seis semanas vedado aos estrangeiros. Sinto-me viajar em direcção a um passado totalmente desconhecido. Ao contrário do que acontece mesmo nas mais pobres cidades do Paquistão, no Afeganistão não deparei com nenhum cibercafé, não vi nenhum aparelho de televisão, não descortinei um só telefone nem tão-pouco lobriguei uma simples casa de banho. Mas, apesar de supostamente os papagaios de papel estarem proibidos neste país, dei comigo, perto de Charbagh, a observar um rapazito que tentava desesperadamente lançar um desses brinquedos.
Mulheres sem burqa
Deixamos Assadabad em direcção a Konar. O nosso objectivo é Charbagh. Viajamos agora de jipe com mais três homens, todos afegãos, um dos quais conduz. Muitas vezes, a estrada parte-se em crateras de bombas, uma delas, segundo me garantem, muito recente. De vez em quando destapo ligeiramente a cara, o que me permite não só ganhar novo fôlego, como admirar uma extraordinária paisagem de áridas e escarpadas montanhas, que se erguem para além do alcance da nossa vista. Por momentos, apeamo-nos para desentorpecer as pernas. E respirar…
Muito raras naquela região do país, no meio das montanhas ergue-se uma ou outra casa de pedra. Devido às sucessivas guerras que se prolongam há mais de 25 anos, as pessoas já se habituaram a viver em grutas escavadas nas montanhas. E é isso que tem permitido a muitos milhares sobreviverem aos vários bombardeamentos.
O nosso jipe vai rolando por uma estrada muito estreita, que em muitos pontos se confude com caminhos sem asfalto. Estamos a quase 3 mil metros de altitude. Durante a viagem, continuam visíveis os muitos sinais de antigos e actuais bombardeamentos. Não vemos, porém, quaisquer feridos. Mas em Jalalabad, contam-me os meus guias, abundam os vestígios dos mais recentes ataques dos EUA.
Apenas algumas crianças e mulheres se cruzam connosco ao longo da estrada, concentradas nos trabalhos do campo. Vêem-se milharais em bolsas frescas arrancadas à aridez da terra. E ovelhas que pastam as poucas ervas que encontram. Sempre que passamos por pequenas aldeias avisam-me rapidamente que devo tapar a cara.
De súbito, dou-me conta de que nenhuma daquelas mulheres que trabalham nas courelas ou transportam bilhas de barro ou molhos de feno à cabeça veste burqa. Os meus guias esclarecer-me-iam mais tarde que, como os homens estão noutras localidades, ocupados com a guerra, compete agora a elas desempenhar todas as tarefas. E de burqa isso não é possível. Verifico com espanto que a guerra permite agora a estas mulheres afegãs recuperar uma dignidade mínima num país dominado por um regime fundamentalista islâmico que desde 1996 as votou ao total ostracismo. Eu agora já tenho ideia do que é a burqa: cinco minutos depois de a ter vestido, ainda antes de cruzar a fronteira, as dores de cabeça, o calor e a falta de visão eram já de tal modo insuportáveis que apenas o incentivo de poder entrar e conhecer este mundo proibido me permitiu prosseguir com tal provação…
Proibida de rir e de falar
Nos dois dias anteriores, fora instruída para seguir um conjunto de regras muito rígidas, sob pena de deitar tudo a perder logo à passagem da fronteira. Khan, um jovem médico de 29 anos oriundo de Bat Khela, zona tribal do Noroeste do Paquistão (um dos quatro homens que integra o meu grupo inicial), explicara-me calmamente todos os passos a seguir.
Por razões de segurança, e como não falo urdu (língua do Paquistão) nem paxtune (idioma de tribos paquistanesas e afegãs), fui avisada de que não poderia, em momento algum, falar, excepto quando estivesse sozinha com os meus acompanhantes; rir ou estender a mão – excepto a mulheres, e com toda a moderação – são atitudes ou gestos totalmente fora de causa. E nem pensar em pegar na máquina fotográfica. Ele ou outro dos homens da comitiva encarregar-se-ia de fotografar tudo o que fosse possível. No Afeganistão, televisões, máquinas de filmar e fotográficas foram totalmente banidas pêlos talibans. A apreensão de qualquer destes objectos pode ser acrescida de pena capital. Khan esclarecera-me que os riscos começariam no simples atravessamento da vasta área tribal paquistanesa até à fronteira: desde há cerca de quatro semanas que os forasteiros estão proibidos de entrar nestas zonas. Apesar de no mapa estarem integradas no território do Paquistão, elas são, na realidade, governadas por chefes tribais locais, donos e senhores daquelas terras há muitos séculos.
Na pele de ‘uma esposa’ afegâ
Khan informara os seus contactos, quer no Paquistão quer no Afeganistão, de que a nossa viagem tinha por objectivo recolher informações sobre as dificuldades geradas pela guerra, que, posteriormente, permitiriam canalizar ajuda para o Afeganistão. E que o grupo integraria uma paquistanesa. Contudo, fui alertada para o facto de que, durante a passagem entre os dois países – um pequeno posto fronteiriço entre as montanhas, chamado Desfiladeiro de Nava -, a explicação (e a identidade) seriam diversas. Deveria manter-me totalmente imobilizada dentro do carro, fazendo de conta que estava a dormir. Se necessário, os meus acompanhantes explicariam aos guardas tanto no posto paquistanês como afegão – “que se tratava de uma afegã morta de saudades da família”. Nessa altura, um dos meus acompanhantes identifícar-se-ia como meu marido. O Desfiladeiro de Nava é uma das muitas passagens da cordilheira que divide os dois países, utilizada frequentemente por ambos os povos. Todavia, os riscos mantinham-se, já que a representação diplomática taliban na capital paquistanesa ficara a saber que uma jornalista estrangeira integraria o grupo.
Desde 13 de Setembro que o governo de Cabul deixou de emitir vistos, especialmente a jornalistas estrangeiros. Não menos peremptórias, as autoridades de Islamabad não poupam avisos, desde há duas semanas, de que quem for apanhado a tentar atravessar o país em direcção ao Afeganistão será preso.
E os estrangeiros imediatamente expulsos do país.
Treze americanos presos em Jalalabad?
Alguns quilómetros antes de chegarmos a Konar, deparamos com quatro guerrilheiros que atravessam as montanhas a pé, desde Jalalabad. Têm como missão fazer o reconhecimento da situação no terreno, para informar os seus comandantes naquela cidade. De patka (outro tipo de chapéu local), armas e munições ao ombro e rádio transmissor na mão, saúdam-nos amavelmente.
Aceitam conversar durante alguns minutos. E até posar para a fotografia. Ao contrário dos mulana (líderes religiosos) ou dos estudantes das madrassas (escolas islâmicas) que visitei no Paquistão, estes homens não se importam de ser fotografados com uma mulher. Fazem mesmo questão de me mostrar como funcionam os seus rádios e de me colocar uma Kalashnikov nas mãos. Riem-se perante a minha hesitação, olhando-me nos olhos de cara destapada… Enquanto vai mastigando uma pastilha elástica, um destes guerreiros diz orgulhoso que, além de nenhum dos seus soldados ter sido morto pêlos «bombardeamentos da América», os civis (mulheres e crianças) já se defendem das bombas, escondendo-se nas grutas. Nos primeiros dias, esclarece, foram mortos, porém, muitos inocentes. «Agora, as pessoas já estão mais conscientes do perigo». E ri-se, dizendo: «Os americanos só estão a desperdiçar bombas muito caras». Nos últimos dias, acrescenta, os talibans prenderam 13 elementos das forças especiais dos EUA em Jalalabad.
Informação que, naturalmente, não foi entretanto possível confirmar através de fontes independentes. «Olhe para as nossas caras. Veja a nossa felicidade. Não temos medo nenhum da guerra. Esta é apenas mais uma das muitas batalhas que travámos. Quando os americanos vierem em massa para o terreno vão cair no solo como abelhas». Suspeitamos que terá sido este encontro que viria a denunciar, poucas horas mais tarde, a nossa presença no Afeganistão. É que, apesar dos bons contactos dos meus guias, alguns líderes talibans da região, que não estavam a par da nossa visita, ficaram furiosos com o facto de o grupo integrar uma mulher.
‘Munições são os nossos caramelos’
Chegados a Nur Gal – que, como Konar, apresenta um aspecto de normalidade, com os seus mercados (onde se vêem apenas homens), algumas farmácias rudimentares e muitas casas incrustradas na montanha – somos convidados a partilhar uma parca refeição na residência de um dos chefes locais. Da praça central da aldeia sou levada através de um carreiro, resistindo às dificuldades do calor e do tecido da burqa, que insiste em meter-se-me entre os pés. A sua propriedade é composta por um pequeno quintal, uma casa e um celeiro. Pedem-me para entrar na casa. No quintal, reservado aos homens, alinham-se charpi (as chaises–longues locais) e há tapetes no chão, onde já está colocada uma enorme bacia de metal com leite. A refeição dos homens é igual à minha: um naco de nam (pão tradicional) e bolachas de baunilha. Um lauto repasto em tempo de guerra. O pão que me é amavelmente servido tem, no mínimo, uma semana. Para o conseguir mastigar tive de o molhar no chá com leite. As crianças da família observam-me de tal forma que me sinto extraterrestre. Sento-me num charpi imundo. Estão comigo três rapazes e três meninas. Uma das raparigas mais velhas, aparentando não ter mais de 14 ou 15 anos, tenta trocar algumas palavras comigo. E ri-se muito. Como fui avisada de que não devo falar, limito-me a acenar e a retribuir as suas palavras com sorrisos. Minutos mais tarde, um dos meus guias entra para ver se sobrevivo ao convívio. Lanço-lhe um aceno tímido, em sinal de resposta. O dono da casa traz-me a comida e, em tom de brincadeira, puxa de um saco com munições, pendurado numa viga de madeira. Coloca-as em cima da mesa, dizendo: «Estes são os nossos caramelos.» Meia hora mais tarde, saímos pelo mesmo carreiro.
Regresso atribulado
Uma hora depois, já em Charbagh, somos subitamente travados pelas milícias. Os meus guias e os três afegãos são obrigados a sair do carro. Ouço palavras iradas, gritos, bastante confusão, mas não percebo nada. Um dos meus guias informa-me, muito reservadamente, que corremos o risco de ser presos. Depois de muita insistência, aceitam deixar-nos partir. Mas um dos paquistaneses terá de ficar sob custódia da milícia. Nem por um minuto, dizem os três afegãos. Finalmente, conseguem convencer a milícia a deixarnos partir a todos, sob a condição de regressarmos rapidamente ao Paquistão. Tudo, explicar-me-ão os meus acompanhantes, porque o grupo integra uma mulher.
Regressamos assim a Assadabad. Deixamos os afegãos em casa de Molvi Khan e tomamos a estrada para a fronteira.
Os meus guias aconselham-me a aproveitar as últimas três horas de caminho, de novo por entre as montanhas, para respirar ar puro. Abrimos as janelas do carro, rolando ao som de música hindu. E fazemos as últimas fotografias. Khan informa-me, entretanto, que iremos pernoitar em Bat Khela, em casa da sua família, já no Paquistão, portanto – aonde chegaríamos por volta das 10 horas da noite, não sem sentirmos todos uma enorme sensação de alívio.
Os planos para a manhã seguinte, de voltar a cruzar caminhos clandestinos entre os dois países, nunca serão concretizados.
Mal chegamos a casa do pai de Khan, um dos líderes da tribo local informalo-á de que os serviços de segurança de Bat Khela já sabiam de tudo e que o melhor era voltarmos rapidamente a Islamabad. Se ficássemos a dormir em Bat Khela correríamos o risco de enfrentar uma manifestação organizada pêlos mais fundamentalistas, em frente de casa, logo após a primeira oração do dia, por volta das 4 e meia da madrugada. Na melhor das hipóteses, poderíamos ser expulsos a tiro.
Por volta da meia-noite e meia, já em Islamabad, sem burqa mas ainda de schalwar kamiz vermelha, parece que regressei a casa.