Dois juízes da Relação de Lisboa escaparam a uma acusação na Operação Lex, mas vão continuar a ser investigados pelo Supremo Tribunal de Justiça por suspeitas de corrupção. Um é Rui Gonçalves, o juiz desembargador que recebeu um recurso de José Veiga no seu email cerca de três meses antes de o processo lhe ter sido distribuído, como a VISÃO noticiou em janeiro deste ano. Outro é Orlando Nascimento, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, que recebeu em mãos do anterior presidente daquele tribunal superior, Luís Vaz das Neves, o recurso de um processo de Rui Rangel contra o Correio da Manhã.
No primeiro caso, o juiz inverteu a decisão de 1ª instância e absolveu o empresário José Veiga (condenando apenas o ex-jogador de futebol João Vieira Pinto por um esquema de fraude fiscal no momento da sua transferência para o Sporting). No segundo, o juiz decidiu a favor de Rui Rangel, condenando o Correio da Manhã ao pagamento de uma indemnização àquele magistrado.
Nos dois casos, os procuradores que conduziram a investigação da Operação Lex – Maria José Morgado e Vítor Pinto, do Supremo Tribunal de Justiça, e Paula Moura e Sara Sobral, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) – concluíram que os sorteios destes dois processos não obedeceram às regras. Ou seja, em vez de terem sido distribuídos de forma aleatória, através de um programa informático, foram entregues em mãos pelo então presidente da Relação de Lisboa, Luís Vaz das Neves.
A investigação encontrou ainda provas no telemóvel de Rui Rangel de que aquele magistrado, entretanto expulso da profissão pelo Conselho Superior da Magistratura, trocou mensagens com Vaz das Neves sobre estes processos, indicando-lhe os números dos mesmos ou pedindo inclusivamente que o ajudasse (no caso que o opunha ao Correio da Manhã). Essas mensagens constam dos autos da Operação Lex e algumas delas foram transcritas para o despacho final de encerramento de inquérito, ao qual a VISÃO teve acesso.
Estes são alguns dos elementos de prova de que a investigação se serviu para acusar Luís Vaz das Neves, que ao todo irá responder por dois crimes de abuso de poder e um de corrupção passiva para ato ilícito. Nestes casos em concreto, responderá por um crime de abuso de poder no que respeita ao processo que opunha Rangel e o Correio da Manhã e por corrupção, em co-autoria, no caso em que a investigação aponta José Veiga como o corruptor ativo.
Isto porque a investigação descobriu que em datas próximas à distribuição do processo de José Veiga e à posterior decisão favorável do juiz Rui Gonçalves, o ex-agente de futebolistas fez transferências de dinheiro para uma conta de José Santos Martins, um advogado com escritório na Avenida de Berna, em Lisboa, e que a investigação aponta como um dos testas-de-ferro de Rui Rangel. Apesar de não haver provas de que Vaz das Neves tenha recebido contrapartidas financeiras por ter distribuído aquele processo em mãos ao juiz Rui Gonçalves, em suposto conluio com Rui Rangel, a investigação aponta-o como co-autor do crime, por ter beneficiado um dos arguidos do processo e fazê-lo violando as regras e o princípio do juiz natural.
O despacho de acusação da Operação Lex diz que Vaz das Neves acedeu à solicitação de Rui Rangel, “em clara anuência ao plano que este havia desenvolvido com José Veiga”, em “grosseira violação e desrespeito pelo princípio do juiz natural, dos normativos processuais que regem sobre a matéria, dos respeitantes à organização judiciária, dos deveres de isenção e de imparcialidade que sobre si impendiam”, em “conivência com Rui Rangel, para seu benefício e de um terceiro”.
Mais processos abertos
Já sobre os dois juízes escolhidos por Vaz das Neves para julgar aqueles casos e que acabaram por decidir ora a favor do empresário José Veiga ora a favor de Rui Rangel, a investigação não conseguiu ainda chegar a conclusões. Ambos foram ouvidos na Operação Lex apenas na qualidade de testemunhas. Vão ser necessárias mais diligências de prova para perceber se devem ou não ser constituídos arguidos, razão pela qual os procuradores decidiram extrair duas certidões do caso Lex, para não atrasarem mais a investigação principal do Lex, que já decorria desde 2016. Só uma investigação mais aprofundada vai permitir perceber se o juiz Rui Gonçalves e o juiz Orlando Nascimento foram escolhidos por Vaz das Neves para julgar estes recursos porque a sua visão do direito era favorável aos visados Rui Rangel e José Veiga – ou seja, se estes juízes decidiram de facto em consciência – ou se, pelo contrário, decidiram daquela forma em troca de alguma coisa ou sabendo que estavam a beneficiar alguém.
O caso de Orlando Nascimento torna-se mais grave porque pouco tempo depois o juiz desembargador substituiu Luís Vaz das Neves na presidência do Tribunal da Relação de Lisboa. Foi afastado de funções já este ano, na sequência das notícias sobre o seu envolvimento na Operação Lex. No caso de Rui Gonçalves, está ainda por explicar a razão pela qual, se não estava informado de que deveria beneficiar José Veiga, terá recebido o recurso do empresário no seu email cerca de três meses antes de ser nomeado relator do processo, e nunca se queixou do sucedido.
Ao que a VISÃO averiguou, quando foi ouvido na qualidade de testemunha na Operação Lex, o juiz Rui Gonçalves defendeu que não costumava ver os seus emails, descreveu-se como uma espécie de anti-social e argumentou até que nem sequer “ia à bola” com Rui Rangel.
Os investigadores da PJ e do Ministério Público também perceberam que Vaz das Neves tinha entregue em mãos ao juiz Rui Rangel um processo que visava o arresto dos bens de Álvaro Sobrinho. A decisão tinha sido tomada pelo juiz Carlos Alexandre e, na Relação de Lisboa, Rui Rangel inverteu-a. Apesar de ter ficado claro que Vaz das Neves era amigo de João Rodrigues, ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol e um dos primeiros advogados de Álvaro Sobrinho nestes processos (João Rodrigues foi constituído arguido e alvo de buscas mas não foi acusado), não foram encontrados indícios de que Vaz das Neves tenha feito aquela distribuição manual com o intuito de favorecer o ex-presidente do BES Angola. Ainda assim, se forem encontradas novas provas, esta parte do processo será reaberta.
Quando ainda não eram conhecidas as suspeitas sobre os juízes Luís Vaz das Neves, Orlando Nascimento e Rui Gonçalves, a VISÃO escreveu, em março de 2017, que havia fundadas razões para suspeitar que a distribuição dos processos no Tribunal da Relação de Lisboa não era totalmente aleatória.
Na altura, o então presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, alegou que desde maio de 2014 a distribuição era feita através de um programa informático e “presidida presencialmente” por si próprio, a menos que decorressem férias judiciais, altura em que a distribuição era diária e presidida por um desembargador de turno. Embora dissesse que a distribuição era feita “pelo coletivo de todos os desembargadores”, Orlando Nascimento admitia exceções e confirmava que juízes “em situação de baixa médica” ou que se encontrassem ocupados com trabalho em processo-crime ou cível de especial complexidade não entravam na distribuição, desde que essa decisão estivesse sustentada por escrito pelo presidente do tribunal. Os processos só podiam ser distribuídos diretamente a um juiz, acrescentava, “nos casos legalmente previstos”, como quando uma sentença era declarada nula em fase de recurso e era necessária nova decisão daquele tribunal de recurso.
Anos depois, a acusação da Operação Lex veio provar que houve distribuições que não obedeceram a estas regras. E que isso só foi possível porque os presidentes da Relação de Lisboa terão viciado, eles próprios, esses procedimentos legais. Luís Vaz das Neves, que foi presidente do Tribunal da Relação de Lisboa entre 2005 e 2016, em conversa na altura com a VISÃO, usou exatamente os mesmos argumentos legais que o seu sucessor para dizer que só nos casos previstos pela lei os processos eram por si distribuídos em mãos. Acrescentou apenas que, quando um juiz se jubilava, os seus processos pendentes eram redistribuídos pela sua secção, através de “um sorteio manual”. Em nenhum dos casos sob os holofotes na Operação Lex, algum dos juízes se tinha jubilado.
Vaz das Neves é um dos três juízes acusados na Operação Lex. Além daquele desembargador, que se encontra jubilado, o Ministério Público acusou Rui Rangel e Fátima Galante, que era juíza numa seção cível da Relação de Lisboa e foi demitida compulsivamente pelo Conselho Superior da Magistratura devido às revelações da Operação Lex. Rui Rangel, principal arguido, está acusado de crimes de corrupção, abuso de poder, usurpação de funções, fraude fiscal e branqueamento. Em 2016, a VISÃO revelou que tinha sido apanhado na operação Rota do Atlântico e era suspeito de receber dinheiro de José Veiga em troca de decisões judiciais favoráveis àquele empresário.
O Ministério Público também quis acusar Rui Rangel e Fátima Galante, que ainda hoje são casados no papel embora vivam separados, de violação de segredo, por o primeiro ter partilhado com a juíza acórdãos que deviam ser decididos por si. Acontece que esse crime depende de queixa e Orlando Nascimento, confrontado com estes factos pelo Ministério Público (dezenas de emails trocados entre Rangel e Galante, com partilha de acórdãos), decidiu não avançar com uma denúncia por não “vislumbrar” nenhum motivo para o fazer.