Num sábado normal haveria gente a subir e a descer esta rua que liga a da Senhora da Glória ao Largo da Graça, pessoas paradas à conversa em frente às lojas, carros a vencer a subida íngreme. Desde o estado de alerta, quando passou a ser difícil chamar “normal” a qualquer dia, há silêncio e quase nenhum movimento. E também naquela rua de Lisboa se multiplicaram as portas encerradas com avisos pendurados: “Fechado – Covid-19,” “Estamos fechados por causa da pandemia”.
Até há poucas semanas, numa destas casas, havia jornais e revistas à venda em cima de um balcão corrido, por entre caixas com meias, lençóis, cuecas, toalhas ou pijamas. Também aqui os avisos chegaram, mas não pela mesma razão. Na porta de chapa castanha, misturado com os anúncios de descontos de 25% nos têxteis, há uma folha A4 onde se lê: “Encerramos definitivamente dentro de um mês”. Numa janela do rés-do-chão, dois metros para o lado, mais papéis escritos colados nos vidros: “Temos jornais e revistas. Bata na janela.”
Bato. Enquanto abre, Ana Verdasca compõe o cabelo. “Ai, deixe-me pentear que estou toda despenteada,” pede, os olhos ainda mal habituados à luz da rua. Vive temporariamente ali, no armazém da loja, enquanto não terminam as obras na sua casa, uma rua abaixo. Durante 40 anos foi a mãe, Antónia, quem explorou o estabelecimento, uma capelista, sítio onde se vendia de tudo – ainda hoje há agulhas e novelos de lã nas prateleiras. Mas desde que partiu uma perna – e o proprietário anunciou a venda do prédio – a mãe fechou a loja e a filha resolveu começar a vender as coisas à janela do armazém.
“Como vou estando aqui por casa e são pessoas conhecidas…,” justifica, lembrando a necessidade de servir os habitantes do bairro, mesmo que menos habituais em tempos de recolhimento por causa no novo coronavírus. Desde que foi decretado o estado de emergência, a clientela caiu a pique. “Uiii, uns 90%! As pessoas de mais idade não vêm. Não saem de casa.” Se antes as vendas já eram baixas, agora por dia não saem mais de dois jornais ou quatro revistas semanais. “As de passatempos é que começaram a vender-se mais.”
Salvar o recheio
Na mesma rua onde há prédios à venda por mais de um milhão de euros, para mandar abaixo e fazer de novo, o da capelista, já comprado por um investidor, seguirá o mesmo caminho. Mas enquanto isso não acontece – a quarentena em que o surto de Covid-19 mergulhou parte dos investimentos em imobiliário do País também deixou este em suspenso -, Ana tem outra tarefa em mente: salvar o mobiliário da loja, um balcão corrido em madeira, pedra e vidro, além dos nichos e das prateleiras que ocupam três paredes em tons de branco e amarelo, envelhecidos de décadas. “Lá em casa não cabe, por uns centímetros,” lamenta.
Cadeado na porta, recolhe ao armazém-casa e fecha a janela que serve de balcão improvisado, revelando mais um cartaz colado no vidro: “Se os nossos jornais e revistas falassem estariam a dizer: ‘Muito obrigado, soldados do papel,'” a mensagem criada pelos grupos de media e pela VASP para agradecer aos vendedores que se mantêm abertos em tempo de epidemia. Há cerca de duas semanas, ainda sem estado de emergência decretado, a distribuidora estimava que a crise de saúde pública já tivesse levado 20% dos quiosques a fechar portas temporariamente. Hoje o número será superior. Ana Verdasca, para já, continua a vender jornais e revistas. É só bater-lhe na janela.