Quando se encara o incompreensível, o mais simples é pensar “isto é obra de um louco”. Acontece quando vemos o alpinista Alex Honnold a subir sem ajuda ou segurança a parede vertical do El Capitan ou o saltador Felix Baumgartner a atirar-se de um balão de hélio, a 39 quilómetros de altura, ultrapassando a velocidade do som nesta descida vertiginosa. Também é tentador remeter para a esfera da loucura as imagens de um campo de concentração, os relatos aterrorizadores dos exilados da Coreia do Norte ou a contabilidade dos milhares de mortos ordenados pelo Carniceiro do Uganda. Mas esta é a explicação simplista.
Se as proezas de Hannold e de Baumgartner nos mostram que o que está em causa é uma extraordinária capacidade física, aliada a treino e capacidade de planeamento – e vá, uma pitada de loucura –, mergulhar na vida de criaturas do mal, como Hitler ou Kim Jong-un, leva-nos a concluir que são vários os ingredientes que fazem nascer um ditador.
Para a preparação do livro Mentes Tirânicas, editado em português pela Gradiva, o neurocientista americano Dean A. Haycock, dedicado à divulgação de Ciência, leu biografias, visualizou entrevistas, documentários, falou com psiquiatras e psicólogos, além de aceder a perfis psicológicos elaborados pelos serviços secretos americanos, para compor o perfil de seis das personalidades mais aterrorizadoras dos tempos modernos – Estaline, Hitler, Mao, Kim Jong-un, Kadafi e Saddam.
Através dos retratos de cada uma destas personagens torna-se claro que, para o aparecimento de um génio do mal, são necessárias três condições essenciais: haver um património genético que leve ao desenvolvimento de uma personalidade maléfica; uma infância terrível, em ambiente de guerra, maus-tratos e falta de afeto; e um contexto político e histórico de instabilidade. “Não é fácil ser-se um tirano. É preciso que ocorra uma sequência especial de acontecimentos para que uma pessoa ambiciosa, com uma personalidade autoritária, adquira o controlo da vida e da morte sobre os seus concidadãos e, eventualmente, sobre os países vizinhos”, escreve o autor que, antes deste livro, já se tinha dedicado ao estudo das mentes de grandes criminosos e assassinos em série.
Quem é quem?
Um dos exercícios propostos pelo autor leva-nos a tentar adivinhar o futuro de duas personagens cujo perfil é traçado em linhas gerais: um nasceu num país em guerra, escapando, por milagre, a bombas, incompatibilizou-se com o pai, violento e a sofrer de stresse pós-traumático, que o espancava, saiu de casa na adolescência e viveu na rua. O outro cresceu numa família disfuncional e humilde, com um pai cruel que abusava dele, uma mãe que era muito severa mas que teve sempre como objetivo que o filho se dedicasse aos estudos. Era inteligente e tinha grande curiosidade intelectual. Quem é quem? Dada a semelhança entre as biografias, podíamos pensar que o destino terá sido o mesmo. Só que não. O primeiro é o vocalista da banda de rock Blood, Sweat & Tears (Sangue, Suor e Lágrimas), David Clayton-Thomas, artista aclamado e vencedor de vários prémios de música. O outro é José Estaline, que manteve uma política de terror na então União Soviética, ao longo de mais de 30 anos. Serve esta pequena charada para reforçar a tese do neurocientista: são precisos vários fatores para se criar um tirano. “Não há dúvida de que muitas crianças passaram por maus momentos, como ainda acontece nos nossos dias, mas quantas delas cresceram para se tornarem déspotas?”, questiona.
Para começar, há a questão dos genes. Um tirano já nasce equipado com traços de personalidade que o tornam antissocial. “A hereditariedade dos traços de personalidade anda à volta dos 50 por cento. Isto significa que cerca de metade da variabilidade dos traços que podemos ver numa população se deve aos genes herdados”, explica Dean A. Haycock. Narcisismo, maquiavelismo e paranoia são as características mais relevantes que, num Hitler ou num Estaline, aparecem aliadas a uma ambição de domínio e de comando do destino dos outros.
Estima-se que, na população geral, 1% terá características psicopáticas relevantes e cerca de 6% registará níveis de narcisismo acentuado. Depois, há que crescer num ambiente que alimente estas ambições malévolas – embora esta não seja uma condição indispensável. Em casos raros, o psicopata pode surgir numa família carinhosa e estruturada, como é o caso do atirador do massacre de Columbine, Eric Harris. Também não há relatos de que Mao Tsé-tung, que liderou a Revolução Chinesa, à custa de milhões de mortes, tenha sofrido abusos graves na infância.
Por último, é preciso que o contexto histórico dê abertura ao aparecimento destas figuras. Sociedades e nações enfraquecidas tornam-se vulneráveis, em virtude de tensões económicas, conflitos sociais ou guerras. Em tempos adversos, há maior probabilidade de um grupo de pessoas apoiar e defender os que se apresentam como salvadores, os messias. “Em última análise, o fator-chave para o surgimento de uma ditadura não é o facto de ter um tirano no poder, mas o ambiente que faz com que a ascensão de alguém como ele não o torne apenas possível, mas provável”, nota o autor.
Trump: demasiado vaidoso
Se, por um lado, os indivíduos inteligentes e manipuladores com propensão para o mal se aproveitam de uma nação destroçada, por outro lado, na verdade, a grande maioria não vê num Estado falhado a hipótese de dominar e de matar. Entender a mente de um tirano exige analisar vários aspetos da sua vida, e é isso que Haycock faz ao combinar as biografias de cada um dos ditadores com as análises produzidas pelos especialistas.
Sobre Kim Jong-un, o único perfilado ainda vivo, o autor insiste na ideia de que o líder da Coreia do Norte está muito distante da imagem de pateta que as suas vestes anacrónicas e o seu penteado ridículo transmitem. Desde criança mostrou ser competitivo, impulsivo e tempestuoso. Esta personalidade dominante era alimentada pelo pai, Kim Jong-il. O protecionismo continuou vida fora até que, dois anos antes de morrer, o ditador coreano decidiu dar a sucessão ao filho mais novo, com o argumento de que o mais velho seria demasiado efeminado. Só Kim Jong-un teria capacidade de manter a ditadura e o poder na família. Por volta dos 28 anos (a idade exata do líder não é conhecida), chegou ao poder e logo mostrou que o pai não se tinha enganado na avaliação. Seguindo a doutrina de Estaline, começou a eliminar os suspeitos de traição, mantendo campos de concentração, controlando as fronteiras de forma claustrofóbica e montando um programa de desenvolvimento de armas nucleares. O jornalista e analista político Mark Bowden resume assim a criação do monstro: “Aos 5 anos, todos somos o centro do universo. Tudo – os nossos pais, a família, a casa, o bairro, a escola, o país – gira à nossa volta. Para a maioria das pessoas segue-se, então, um longo processo de destronamento, quando Sua Majestade, a criança, se confronta com a verdade mais óbvia que nos torna humildes. Mas não foi assim para Kim. O seu mundo dos 5 anos seria o mesmo mundo dos 30 anos ou muito parecido. Toda a gente existe para o servir.”
Esta descrição também encaixa bem em Donald Trump. Uma figura muito analisada no livro, apesar de não figurar na categoria dos tiranos. Falta-lhe ambição maquiavélica e assassina para ser líder supremo, mas usa ferramentas e táticas dos ditadores. Vários psicólogos e psiquiatras se têm pronunciado sobre a sanidade mental do Presidente americano. Há quem esteja certo de que representa perigo para os Estados Unidos da América e para o mundo, não por ser louco, mas por ser mau.
Entre os seus apoiantes estão americanos preocupados com o facto de os EUA estarem a perder o domínio para países como a China ou até a Rússia, elegendo-o, apesar de todas as enormidades que cometeu durante a campanha. No passado, outros candidatos perderam eleições por gafes muito menos graves. Dean Haycock avança uma explicação: “A nação já não partilha fontes comuns de informação, que era, por sua vez, discutida quando três canais cobriam os acontecimentos. Ao invés. as opiniões das pessoas de qualquer ponto do espectro político são apenas reafirmadas e reforçadas.”
Mesmo assim, acredita o autor, Trump não chegará a tirano por ser demasiado narcisista. “As figuras tirânicas em ascensão, que procuram lugares de poder e que querem conquistar aliados, precisam de enganar os outros, esconder algumas das suas pretensões e ter como aliados pessoas de quem não gostam, de modo a usá-las a seu favor. As características narcísicas de Trump são de tal modo fortes que é mais provável que ele responda favoravelmente a qualquer um que o elogie do que demonstre as suas fúrias narcísicas a quem o desafie e critique.” Ou seja: basta ser bajulado para mudar de rumo.
Mas isto não quer dizer que o autor o considera inofensivo. “O grande perigo é que o narcisismo de Trump o transforme num líder autoritário. A imagem distorcida que tem de si mesmo e das suas capacidades fazem-no acreditar que pode governar bem com poderes ditatoriais.” É manter o estado de alerta. “A derradeira responsabilidade pelo aparecimento de um ditador num país é dos cidadãos desse país” – convém não esquecer.
Génios do mal
Hitler
Alemanha
O pai era alcoólico e muito violento. A mãe, que o mimava e tentava proteger, morreu cedo, de cancro, o que o deixou profundamente perturbado
Estaline
União Soviética
Vaidoso, gostava de poder e fama. Tinha a capacidade de ser encantador, até com quem o servia
Kadhafi
Líbia
Mantinha um harém de adolescentes e chegou a dizer que o seu povo morreria por ele. Na verdade, passou os últimos tempos alheado da realidade do país
Mao Tsé-tung
China
Estima-se que a sua má governação tenha levado à morte 40 milhões de pessoas, só pela fome
Saddam Hussein
Iraque
Matava todos os que suspeitava serem uma ameaça. Usava sósias e acreditava estar destinado à grandeza