Se uma agência de comunicação, bem relacionada nos círculos de poder, anuncia a inauguração da fábrica de produção de canábis da Tilray, marca global da Privateer Holdings, em Cantanhede, convém estar atento aos sinais. Esta quarta, 24 de abril, 45 anos depois do princípio do fim da ditadura, aquele grupo impulsiona outra revolução nacional, mas agora com cânhamo no lugar dos cravos. O investimento no concelho liderado pelo PSD ronda, para já, 20 milhões de euros, promete 100 postos de trabalho e um negócio auspicioso, desde que o Governo regulamentou a produção e a comercialização industriais da planta para fins medicinais.
Sediada no Canadá, administrada por norte-americanos e a primeira produtora de canábis a estar na bolsa de Nova Iorque, a subsidiária Tilray chega a Portugal em ponto de rebuçado e bem calçada, diga-se. Embora João Tocha seja “tu cá, tu lá” com ministros, empresários de topo e, desde dezembro, consultor de comunicação do PSD de Rui Rio, o dado mais relevante nem sequer é o facto de a agência FC5, da qual é diretor-geral, ter sido escolhida para assessorar a marca. A Tilray mostra-se aos mercados internacionais com um conselho consultivo de peso, no qual figuram ex-governantes de várias geografias, entre eles Joschka Fischer (antigo vice-chanceler e ministro das Relações Exteriores da Alemanha) e Jaime Gama, histórico do PS, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-presidente da Assembleia da República, atual líder da Fundação Francisco Manuel dos Santos e do Novo Banco dos Açores. “A circunstância de ter participado num governo que deu passos sólidos nesta área, reconhecidos mundialmente, e o facto de ter acompanhado desenvolvimentos da temática no plano multilateral devem ter pesado na escolha”, admite o próprio à VISÃO.
O novo gin tónico
Ao contrário de versões postas a circular, Jaime Gama não é “consultor de produção” do grupo “e muito menos da unidade que a empresa possui em Cantanhede”, esclarece. O fórum que integra dá prioridade a abordagens globais e não tanto a investimentos concretos. “A comparação entre quadros jurídicos nacionais e o estudo da evolução das convenções internacionais são questões de grande importância”, assinala, admitindo seguir os artigos do filho sobre o assunto “e até as recomendações bibliográficas que sugere”.
O advogado João Taborda da Gama não é especialista de fresca data: há muito que acompanha setores e matérias altamente regulados, como o da saúde e o das substâncias controladas. “Em muito poucos anos, mais de metade do mundo tratará a canábis como trata o gin tónico”, escreveu, no DN, o fundador da Gama Glória, sociedade que presta serviços jurídicos à Tilray. Possuidor de “instituições muito sofisticadas na administração pública, uma comunidade científica reconhecida, um clima favorável e mão de obra qualificada, Portugal tem sido procurado por um conjunto significativo de investidores internacionais”, reconhece à VISÃO o antigo consultor político do Presidente da República Cavaco Silva. Para este jurista, “a indústria da canábis medicinal permite que o País se posicione, desde o início, num setor económico nascente e de uma dimensão incalculável”, juntando investigação, as ciências da vida e a componente agrícola. Esta última tem ainda a vantagem “de atrair investimento estrangeiro para o interior em zonas que, de outra forma, seriam menos procuradas”, assevera.
Ângelo Correia e além-Tejo
Membro do conselho deontológico da Apifarma, associação da indústria farmacêutica, o secretário de Estado do último e breve governo PSD/CDS considera “muito positiva” a regulamentação da lei que garante acesso à canábis medicinal, mas adverte para o facto de a mesma limitar, “de forma demasiado restritiva”, as doenças sujeitas a prescrição médica. Por ele, seria adotado o modelo alemão, no qual “cabe ao médico a decisão sobre quais as indicações terapêuticas em que a canábis deve ser prescrita, tendo em conta a análise do paciente e o estado da investigação”. João Gama confia numa futura revisão desse aspeto e defende, também, “uma intervenção legislativa para clarificar o estatuto do CBD [canabidiol] e do cânhamo industrial”, além de reclamar uma “melhor coordenação” entre os ministérios da Saúde e da Agricultura. A face do grupo no qual se integra a empresa de Cantanhede é Brendan Kennedy, a quem a revista Forbes chamou o “homem mais rico da canábis legal” “e talvez o rosto do seu futuro”. Estudos regulares sobre a evolução liberal de diversos países, desde o casamento gay até à religião, ajudam aquele executivo empresarial a prever a legalização da planta, para fins médicos ou recreativos, e antecipar possíveis investimentos na área dos produtos, medicinais e outros, que recorrem a ingredientes não psicoativos.
Enquanto a Tilray diz ao que vem, a Terra Verde, sediada no Montijo, guarda segredo. “Daqui a um mês haverá novidades”, referiu à VISÃO o empresário e ex-dirigente do PSD, Ângelo Correia, prometendo revelar, em breve, os investidores estrangeiros e o plano de negócios para a produção e comercialização de canábis medicinal. O antigo ministro da Administração Interna e conselheiro de vários líderes do seu partido confirma ter adquirido 40% da sociedade gerida pelo engenheiro agrónomo israelita David Zevi Yarkoni, cuja particularidade mais saliente é manter-se incontactável. Com nacionalidade portuguesa a partir de setembro de 2002, concedida na vigência do governo de Durão Barroso, este produtor de flores deixou de ser notícia desde que, há uns anos, ficou famoso por ter importado as primeiras gerberas para Portugal.
Sintra e Aljustrel, este mais a sul, são, entretanto, os territórios escolhidos pelo grupo Holigen, registado na ilha de Malta, para investir neste negócio. A subsidiária RPK Biopharma iniciou contactos com aqueles municípios em 2017, prevendo investir 45 milhões de euros com a criação de cerca de 200 postos de trabalho (140 em Aljustrel e 40 em Sintra). Segundo Pauric Duffy, o rosto da empresa, aquela região alentejana terá “uma das maiores instalações mundiais de cultivo de canábis ao ar livre”. O licenciamento deste projeto, considerado de Potencial Interesse Nacional (PIN) pelo Governo, já está em curso. Se tudo correr de feição, as instalações de Sintra estarão operacionais ainda este ano e as de Aljustrel no início do próximo. Em 2019, a RPK Biopharma prevê produzir 20 toneladas de canábis para fins medicinais e 500 no próximo ano. Se tal patamar for atingido, “seremos o maior produtor mundial”, garante Pauric Duffy, que não sentiu necessidade de recorrer a figuras de peso político para a estratégia de expansão do grupo no País: “As autoridades têm sido muito colaborantes e a maioria dos outros stakeholders da sociedade portuguesa tem demonstrado uma mentalidade progressista e positiva face à canábis medicinal”, assinala, confiando no contributo de cientistas e de médicos. “Estamos a procurar estabelecer acordos de cooperação com entidades como a Fundação Champalimaud”, revela.
A freguesia de São João de Negrilhos, em Aljustrel, assegura, no entender da RPK Biopharma, condições ideais para as colheitas de canábis de grau farmacêutico. “Se considerarmos as características do nosso concelho, com pouco mais de 9 mil habitantes, é fácil compreender os impactos de um investimento desta magnitude”, refere Nelson Brito, líder socialista daquele município de predominância mineira, setor em que trabalham mais de mil pessoas. A chegada da água do Alqueva aos campos da região tornou o setor agrícola mais “próspero”, permitindo diversificar a base económica de Aljustrel. “O Alentejo não pode ser uma nova versão do ‘Celeiro da Nação’”, atalha o presidente da autarquia, considerando urgente “transformar e comercializar produtos” a partir da região. De resto, garante, estarão ultrapassados mitos e preconceitos em torno da utilização da canábis para estes fins. “Em Aljustrel, esse não será certamente um obstáculo a este investimento. O pensamento dominante é que as drogas podem ter bons e maus usos. Este projeto tem, aos olhos da população, um bom uso como finalidade.”
Também localizado no distrito de Beja, mas sem que a empresa revele o local exato “por razões de segurança”, o projeto de canábis medicinal da Sabores Púrpura, de Coimbra, envolve um investimento de 100 milhões de euros e a criação de 400 empregos nos próximos anos. Segundo Sofia Ferreira, da sociedade gerida pelo marido Miguel Pereira da Silva, filho de um ex-vereador socialista no município do Mondego, a decisão relativa a este negócio foi tomada no seguimento do calvário vivido por ambos na procura de soluções para problemas de saúde do filho menor. “Quando se conhece bem esta área, como nós fomos obrigados a conhecer, a dada altura surge a pergunta: por que razão não apostamos, nós próprios, em produtos que assegurem outra qualidade de vida?”, justifica. A sociedade tem ainda participações na All Red (Tavira) e na Madre Fruta (Olhão), e foi a primeira a obter a autorização do Infarmed para iniciar o negócio.
Embora a legalização do uso recreativo da canábis tenha sido chumbada pelo Parlamento em janeiro, recentes notícias indicam que, em breve, surgirão dezenas de investidores à conquista do território português e das melhores localizações para a produção da versão medicinal da planta ainda associada a estigmas e a preconceitos. A julgar pela febre do “ouro verde” que atravessa o País – um negócio mundial estimado em 50 mil milhões de euros (El País) –, é caso para dizer que os responsáveis da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde terão, nos tempos mais próximos, muita ervinha para se entreterem – e para certificar.