Luís Américo rolava na sua Zundapp de quatro velocidades a 45, 50 km/hora, numa estrada do Baixo Alentejo, quando a viseira embaciada do capacete lhe caiu de repente sobre o rosto. Sem visibilidade, tirou uma mão do guiador para levantar a viseira e com esse gesto perdeu o controlo da motorizada. O atrelado de mantimentos só agravou a situação e o pequeno empresário, 36 anos, despenhou-se numa ribanceira com cerca de dois metros. Não se recorda se perdeu os sentidos, mas lembra-se da chegada da ambulância, que o transportou para o hospital de Beja, onde lhe diagnosticaram uma fratura na clavícula direita.
Foi a primeira baixa (e seria a única) entre os oito participantes da Volta a Portugal em 80 horas, em motorizadas de 50 centímetros cúbicos (cc). O grupo tinha arrancado nesse mesmo dia, 29 de novembro de 2018, de madrugada. E a primeira etapa era logo de uma exigência extrema: 698 quilómetros, entre Armação de Pêra, no Algarve, e Santa Marta de Penaguião, no distrito de Vila Real, a serem cumpridos em 25 horas. Cinco pequenos empresários, um mecânico, um técnico de frio e uma funcionária administrativa, com idades entre 49 e 30 anos, lançaram-se à estrada, para cumprir aquela distância a puxar por oito motorizadas saídas há cinco e quatro décadas de fábricas nacionais que integram o património falido da indústria portuguesa – a Famel, de Águeda, e a SIS-Sachs, da Anadia.
“Apertem, que elas não morrem”, ouve-se no princípio do documentário sobre a aventura, realizado por Samuel Amaro, 39 anos, finalista do mestrado em cinema na Universidade Lusófona, com antestreia no próximo dia 27 no Moto Clube de Faro e que será exibido no festival Film Motorcycle, em Lisboa, no último fim de semana de maio, mas que a VISÃO já viu (e cujo trailer apresenta em primeira mão). Homem dos sete ofícios (é também professor de vídeo, som, marketing de conteúdo e educação musical, além de criador do projeto Olhares sobre rodas, com páginas no Facebook e no YouTube), Samuel Amaro aprendeu a andar de moto aos 12 anos na Zundapp do pai, acelerando a “cinquentinha” nos terrenos da família em Odemira.
Este contacto precoce com as motorizadas de 50 cc de fabrico nacional é comum aos sete homens e à única mulher, Olga Rebelo, 37 anos (e do Norte – os restantes aventureiros residem todos no Algarve), que partiram para a suposta missão impossível naquela madrugada de novembro do ano passado. Olga Rebelo também se diferenciou por rolar numa Sachs V5, enquanto todos os outros seguiam em diversos modelos da Zundapp, fabricados pela Famel (o acidentado Luís Américo, após receber a alta hospitalar, acompanhou o grupo, de braço ao peito, no carro de apoio).
À BOLEIA DE JÚLIO VERNE
A ideia surgiu durante uma conversa de amigos num bar em Albufeira, no Algarve, conta à VISÃO Nélson Francês, 43 anos, empresário no ramo das motos e mentor do projeto. Havia a vontade de “fazer qualquer coisa fora do comum”. Até que se falou no romance de Júlio Verne A Volta ao Mundo em 80 Dias. Depressa se passou para Portugal e as 80 horas, a serem conquistadas, claro, sobre assentos de motorizadas clássicas nacionais. “Não queríamos apenas queimar gasolina e conhecer pessoas – pretendíamos ajudar quem precisasse”, diz. E essa componente solidária foi cumprida pelas centenas de pessoas que os seguiram pelas redes sociais e os esperaram em quatro locais de paragens: Silves, Setúbal, Porto e Vila Real. Combinou-se que não haveria doações em dinheiro às quatro instituições de solidariedade social escolhidas. Só bens alimentares, vestuário e brinquedos. E, à chegada ou à partida dos sítios de paragem, fãs das “cinquentinhas”, nas suas 50 cc, acompanhavam e davam ânimo aos aventureiros durante alguns quilómetros.
Se pode ser verdade que estas motorizadas “não morrem”, o certo é que se avariam. No documentário de Samuel Amaro, é nas circunstâncias de avarias que ressaltam a união e o companheirismo do grupo. Mas numa experiência tão intensa, de refeições ligeiras e rápidas, de pouquíssimas horas de sono (três no máximo) dormidas, por exemplo, em camaratas de bombeiros voluntários, os momentos de alta tensão e de stresse são inevitáveis. As duas situações mais complicadas aconteceram quando o grupo andou perdido, durante três horas, na zona de Santa Comba Dão, e na altura em que Nélson Francês, no Norte, deu mostras de querer desistir, vencido pelo cansaço.
No entanto, Nélson, Luís Constâncio, Vergílio Contreiras, Cláudio Duarte, Óscar Teixeira, Olga Rebelo e Fábio Felício fizeram ainda melhor do que esperavam. Chegaram à meta, em Armação de Pêra, de onde haviam partido, em menos de 80 horas. Sob os aplausos de centenas de pessoas, o cronómetro marcava então 79 horas, 25 minutos e 51 segundos, ao cabo de 1 673 quilómetros percorridos em quatro etapas, a uma velocidade máxima de 50 km/hora. Não é para todos.