Enganam-se os que acreditam que Dinamene morreu, que sucumbiu no mar.
Dinamene não morreu, como jamais morrerá o amor. Dinamene sobreviveu às profundezas do oceano, à solidez da terra – sobreviveu à fé, às palavras, à desventura. Dinamene vive e é feliz dentro da ideia que a compõe, dentro da alma que a habita. Dinamene está presente dentro de todos os que a procuram, que passam por ela, que a encontram pousada sobre as coisas, entranhada na matéria, a iluminar a alma que existe em tudo, a contornar o espaço que sustenta a vida, a razão que equilibra o mundo.
Neste preciso momento vejo-a, como a vejo sempre que resolvo passear junto à praia num dia qualquer por qualquer razão – faça chuva, faça vento, esquente o sol. Procuro-a e está lá. Basta um motivo, basta querer. O tempo que experimento, repete-o deitada, sentada ou a caminhar sobre a barra da península. Entoa e rememora versos, revive memórias à proa de um presente que deambula entontecido.
Dinamene espera por quem ama – quem se ausentou e tarda, mas que vem. Descansada, paciente, sabe que a espera não é vã, que vão é apenas o que nasce da suspeição. Crédula, repousa o olhar eterno sobre o horizonte disperso, vagueia a atenção pelo espaço espontâneo do céu, pela planície sinuosa das ondas. Repito-a – repito-lhe a vontade, os gestos. Devagar, percorremos o limite que divide o mundo dos homens do mundo dos deuses, o físico do espiritual, a exasperação da esperança, o desmedido do natural, a bestialidade do divino.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Entendo – uma fé inabalável existe na natureza que não existe nos homens. Ainda que falhe tudo, não falhará o mundo, não falhará o amor – a natureza não falha. Um poder incomensurável equilibra tudo. Dinamene sabe tudo isto e manter-se-á leal – fé, justiça, glória, ou amor somente.
Basta amor somente.
Dinamene não sucumbirá em vão, desprotegida de um deus, de entendimento, da promessa de um paraíso possível – aqui, além. A sua alma permanecerá para lá da robustez das vagas, da frontalidade dos combates, da transparência das palavras, da eternidade das estâncias, do compromisso, da memória, do coração, da alma. A sua existência, a perseverança – garantirão o éden imprescindível.
Faz um sol deslumbrante sobre a península, sobre a parede, sobre os nossos corpos confortáveis, as nossas mentes relaxadas, os nossos passos. As horas prolongam-se dentro da espera – abreviam-se dentro da dúvida. O Sol parece acelerado, cúmplice – renova-se entre avanços e recuos. Uma centelha trémula vacila dentro de direções caprichosas – ética, convicção, vontade.
Não te esqueças daquele amor ardente.
Não me esqueço daquele amor ardente.
Faz um sol deslumbrante. Dinamene permanece sobre a parede. Levanta a atenção em direção ao astro – brilhante, firme, elementar, igual para todos. Espreguiça-se sob o conforto de que ninguém é dono – curva o corpo todo para frente, para baixo, as costas arqueadas, o rabo empinado, as patas todas esticadas para a frente. Boceja enquanto reescreve mentalmente um destino.
Uma nuvem conquista a forma de uma caravela – cresce num oceano azul-claro – avança e desfaz-se. Uma onda estremece, avança, cresce – imita uma vaga sobre um casco de um navio – desfaz-se. Um aperto invade o pensamento – cresce, desfaz-se. A água avança sobre a areia enrolada em espuma – desfaz-se. O mundo faz-se e desfaz-se – refaz-se.
Dinamene desassossega-se – espreita a distância, as ondas, as rochas, a areia, as dunas – as casas atrás, o castro, o atraso. Esperar faz sono, perverte, distrai, liquida. A vida naquele retalho de península parece desistir de esperar com ela – lenta, demasiado paciente. Parece que a história adormece por ali – centenas de anos em centenas de segundos – a vida passada, faltosa, reservada.
Dinamene não quer adormecer, deixar correr a existência fora dela, o amor fora da alma. Sentada, distrai o espírito a olhar para as ervas dispersas, para os cardos que intimidam entre montículos de areia, o feno que esvoaça, os cordeiros-da-praia que acenam. Distrai a espera à procura de movimento, gestos que sabe contidos e encobertos nas sombras, atafulhados nas luras, dilatados sob a silhueta listada dos passadiços, sob os cascos invertidos das embarcações abandonadas. Distrai o tempo a trocar uma insegurança por outra – o adiamento pelo manifesto.
Existem olhares esquivos entre as redes emaranhadas – vê-os. Representam o que são – presenças ocultas, gatos. Alternam esconderijos camuflados em patranhas, onde o mal se afina e o bem se dana.
Uma réstia de sol paira ainda sobre a península. Dinamene enrosca o corpo sobre si mesmo para manter-se quente. Não quer pensar no presente acanhado, no passado transposto. Agora, não abalam dali caravelas, revelam-se rotas – cada um dirige o seu bote, cada qual sabe do seu caminho, cada um vai por si. Não existem tesouros – cada qual agracia-se a si mesmo. Os sonhos são apneias.
Faz sol e Dinamene olha uma vez mais para cima, para a estrela sonolenta. Quando se espera assim, demasiado, repetem-se os gestos, pensamentos, erros – demasiados que se perde a noção daquilo que são – tornam-se à força da persistência, fragmentos de uma realidade imutável que deixa de carecer de correção.
Alguns olhares permanecem quietos entre as redes, fixos – alguns corpos moldados a uma quietude que irrita. Dinamene vê-os a todos, fixos em si sobre a extensa parede amornada. Querem corrompê-la, arrastá-la com eles para o escuro, para a prevaricação. Não irá. Também, não se atrevem a avançar. Estão entretidos numa luta estéril – cada um a cobiçar o canto do outro. A coragem está presa às amarras do medo, a audácia assustada a dominar os avanços. Os arrojos empurram-se e perdem força entre arremessos. Dinamene não passa de um vislumbre sobre a parede, uma possibilidade, uma invasão, uma reminiscência – outro gato apenas.
Não te esqueças daquele amor ardente.
Não me esqueço daquele amor ardente.
Camões surgirá a qualquer instante – apressado, cheio de redondilhas, narrações, louvores, amores. Quando chegar, saltará altivo sobre parede e de lá se voltarão todos os olhares escondidos, todos os corpos aninhados, toda a coragem envergonhada, submissa, infértil, senil.
Todos querem dominar aquele cantinho da península – farão tudo por isso, qualquer maldade.
Camões fará tudo por amor.
Pior que naufragar no mar será naufragar em terra.
Quando Camões chegar e subir à parede – porque Camões virá -, poderão vir de lá centenas, mil. Ainda que trôpego, ressuscitado, arriscará perder na luta o outro olho – esgadanhará a gataria até à morte se for caso disso – até sair gloriosa a península sob a centelha de luz que resta.
Bastará amar somente.
Dinamene