NÃO FUI EU A ESCREVER…
A minha secretária conhece segredos que a maioria dos meus amigos nem sonha. Parece ter vida própria. Sim. Tem vida vivida ao meu lado e, por vezes, dentro de mim. Já me viu rir; já me viu chorar. Também já assistiu a projectos iniciados, uns que tomaram forma e seguiram o seu caminho; outros que se perderam na voracidade do tempo ou da minha própria incapacidade de os transformar em realidade. Muitas vezes ela surge-me, logo pela manhã, como um prolongamento de vida. E conversamos sobre trabalhos escritos, filhos que partem, netos que virão almoçar connosco. Somos cúmplices de sete anos de crónicas, de anos e anos de ensino e estudo. E, sempre que estou fora da Ilha, parece que me acompanha a amenizar a mesa sobre a qual tenho que pousar o computador para continuar a tarefa que considerei como minha – escrever, para mim e para quem se atreva a folhear o jornal, olhar a foto que tenho por lá e propor-se ler aquilo que do meu pensamento/ser saiu pleno de boas intenções.
Mas, não era a história de vida da minha secretária que me propunha contar-vos hoje. Só que a escrita é algo de vivo e rebelde. Eu proponho-me dizer isto e o seu lado autónomo segue outra estrada. Por vezes, ainda a consigo apanhar a tempo para que me obedeça. Outras não. E lá vou eu, guiado por ela, muitas vezes na escuridão de palavras e frases que nunca pensei dizer.
Para não me perder, vou falar-vos de um amigo que tinha uma sensibilidade feminina que durante muitos anos – tantos, que já não os quero contar! – não consegui compreender. Só há dias, ao falar com a minha irmã, ouvi dela estas palavras que trouxeram a luz da resposta a uma questão que nunca tinha decifrado – um bom marido e bom pai deve ter “qualquer coisa” de feminino. E uma das explicações estava nisto: brincar com os filhos, mimar a mulher, surpreender a companheira com um ramo de flores…E, de imediato, vi aqui retratado esse amigo muito querido. E gostei. E senti muitas saudades desse lado subtil e bom que sempre fez parte da sua personalidade.
A esta distância, que atravessa o tempo e a dimensão diferentes em que nos encontramos, lembro esse ser como uma luz a seguir. E, então, compro camélias em vez de vestidos; reparo em pormenores da sua vida como sinais de uma simplicidade que poucos viram; vejo nas suas vivências uma luta contra o desperdício que não era vulgar em alguém que tinha feito um caminho pensado e ascendente. Alguém que deixou no mundo tais mensagens, não merece ser esquecido. Por isso espero ter a lucidez de ir anotando – como quem conta pequenas narrativas de vida – aquilo que me deixou de legado e que era a sua essência: trabalhar, criar e poupar, sem se deixar devorar pela avareza. Nunca esbanjar, para que o futuro não nos apanhe desprevenidos e desabrigados.
Estas palavras que aqui vou colocando como quem compõe melodias íntimas e saborosas, vêm do fundo da alma, daquele lugar a que só nós temos acesso (talvez também a minha secretária…). É um local cheio de pérolas vindas de mares profundos, difíceis de navegar; de desertos com oásis que só os eleitos podem encontrar a fim de saciar ânsias de sedes desconhecidas que pairam no longe das distâncias em que o céu sabe como tocar a terra e mostrar-se como o fez aos homens de boa vontade e persistente caminhada. Por isso é que os meus trabalhos têm sempre necessidade desta parte a que apelido de íntima, poética, realizadora da personalidade que me grava na vida de escrivã de jornais diários e revistas dispersas fora da Ilha, como um nome é gravado na pedra para todo o sempre mesmo que o mar a insulte com as suas vagas tremendas e pesadas, que a terra trema e tente deslocá-la para longe, cobri-la de limos e conchas e mágoas de amores que não realizou…
Assim vou entregando pedaços de tempo, de vida, de afectos a gente desconhecida. Através de palavras simples e doces, de abundância de sentimentos maiores e de experiências que talvez em algum lugar seres tristes ou sós possam aproveitar como quem agarra com o corpo todo necessidades de alma para continuar a existir e, talvez, retomar caminhos interrompidos por tempestades destruidoras.
E, como disse, o texto seguiu um caminho que exigiu para si próprio. Eu fiquei na praia a olhá-lo e…nada fiz.
Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com
04/03/2012