CONSTRUÍ POEMAS E ODES…
Era Domingo. Um Domingo de sol, calor e mar. Tanto mar! Também de Missas em igrejas vazias de gente magoada de promessas enganadoras e enganadas. O homem seguia pelos caminhos da Ilha procurando o segredo das vidas ali vividas. Caminhava e observava; caminhava e observava. Curvado não pela idade; curvado pelo hábito de esconder a sua estatura rondando o metro e noventa. Rosto curtido pelo sol. – Abençoado este sol que me aquece e alimenta; e me traz à Ilha todos os anos. Há quantos? Contagem perdida nas minhas memórias e achada nas memórias dos netos. Cabelos brancos e ainda fartos. Olhos argutos, habituados às escuridades das perguntas que não querem ser respondidas; atentos às armadilhas dos silêncios envolvendo mensagens traiçoeiras.
Vencido pelo cansaço, o homem procura o calhau rolado mesmo ali perto da canada do mar. Sentado, abre o livro de recordações. E o homem que seguia pelos caminhos da Ilha, agora em descanso sobre o calhau rolado, abre as mãos e, aproximando-as do rosto moreno, chora. Chora lágrimas vindas do interior do tempo e da lava dos vulcões da Terra.
– Augusta, minha querida. Quanto tempo passou desde que partiste que não consigo recordar? Talvez tenha sido ontem. Ou há cem anos! Nunca mais vivi. Andei e andei pelo mundo; construí poemas e odes em Países onde antes tínhamos sido companheiros de viagem. A tua imagem sem imagem sempre presente. O meu corpo sem forças arrastado pelo espírito das tuas lembranças. Tantos rios percorri em busca das tuas águas! Em variadas terras descansei à espera que te deitasses ao meu lado! Subi altas montanhas na tentativa de te avistar. Embrenhei-me em florestas de onde a tua voz me chamava. Entrei em Sinagogas, Templos vários e vi-te ajoelhada em tapetes, pedras, tábuas orando sem orar. Chamei-te baixinho; gritei o teu nome em alta voz…Não eras tu. Procurei vestes de coloridos vários para te presentear. Fui na senda de jóias as mais belas a ver se o seu brilho te acordava. Vim à Ilha, Augusta. Sentei-me um pouco. Queria descansar. Mas, por muito que chore, sei que preciso andar, andar mais, senão posso perder o momento em que chegarás para mim.
Anoiteceu. Ainda era Domingo. O homem desceu até ao mar. Pequenas e abundantes luzes avistavam-se perto das rochas da Calheta. Eram homens ao caranguejo. Embrenhou-se pelas águas macias de ternuras procuradas, como quem segue sem destino nem retorno. Na negrura do céu a alvura de um pano. Descendo suavemente numa abrangência invulgar foi tapetando de branco – qual véu de noiva caminhando por nave de igreja em direcção ao altar – aquele mar enorme. E o homem emudeceu.
– Meu querido, meu amado. Enquanto caminhavas por esse mundo sem fim nem princípio, eu estava ao teu lado. Nunca te aconcheguei nos meus braços, mas sempre deixei que neles descansasses. Sempre que me encontraste orando nos Templos do mundo, era por ti que o fazia. Quando as florestas em que entraste se fecharam sobre ti e te deixaste adormecer, eu velei o teu sono. E, sabes, também chorei de saudades. Porque a minha partida sem partida foi tão dolorosa quanto a tua permanência sem permanência. Vivemos um amor que continua intacto. Estamos, simplesmente, em dimensões diferentes. Vim. As tuas dores eram demasiadas para que eu continuasse em silêncio. Vê. O meu vestido de noiva alvo, com o qual me entreguei naquela longínqua noite de núpcias, ingénua e corada, vestiu-o hoje. Embora distante mesmo perto, recordo a gentileza dos teus afagos sem te apressares, apesar da urgência da tua força de homem brilhar nos teus lindos olhos que aprendi a conhecer. Nesses momentos, mudava inevitavelmente de cor. Mas, foste bondoso e paciente. Por isso, amámo-nos como ninguém. Vamos. Dá-me a tua mão cansada e…eu já sei o caminho.
Amanheceu. As luzes dos homens que ali tinham estado ao caranguejo foram-se apagando gradualmente. Mas, só a chegada das crianças trouxe a notícia – um homem de idade indefinida, cabelo branco e pele curtida pelo sol da Ilha tinha aparecido morto nos calhaus da Calheta. Não foi motivo de notícia longa. Era desconhecido.
Dra. Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com
22/08/2011