QUE PAÍS É ESTE, MANEL, QUE PAÍS É ESTE?!…
Manel, ouve Manel, a televisão está a dizer uma coisa. Lucinda, de avental às florzinhas onde as mãos iam sendo limpas do trabalho de lavar a loiça, gritou para fora da porta arredando o reposteiro de tirinhas de plástico – um luxo este meu reposteiro, quase ninguém o tem na freguesia! E o peito inchava de vaidades modestas pela posse do reposteiro às tirinhas… – enquanto o marido corria a responder a tão assustado chamamento da mulher.
Ficaram, então, os dois unidos naquele espanto da notícia que saía do aparelho: – Foi encontrado o corpo de uma idosa que terá morrido há nove anos na cozinha da sua casa. Vivia sozinha…Os vizinhos falaram. Um sobrinho também deu a sua opinião. Pouco mais se sabia daquela senhora que morrera sozinha.
Lucinda aproximou-se mais de Manel. Um calafrio a percorrer-lhe a coluna. Costumava dizer espinha, mas um dia o médico aonde fora tratar as dores nas cruzes dissera-lhe que o nome era coluna. Então agora procurava usar palavras de melhor qualidade para se fazer respeitar mas, também, para não as ofender. Porque achava que as palavras, tal como as pessoas, podem ficar magoadas quando alguém não as trata bem. E isso não era para ela, não senhor. Sempre se dera ao respeito e sempre respeitara.
Mas, como estava a contar, Lucinda encostou-se mais a Manel, seu marido de longa data, como que a pedir socorro para os seus tempos de velhice que viriam um dia. Também, Manel a aconchegar-se-lhe, num medo não racionalizado mas sentido porque os sentidos têm muitas vezes mais força do que a razão. “O homem pode mover montanhas, se tiver fé”, lê-se num dos grandes livros doados à Humanidade. Que fé? A do sentimento, do afecto, da razão? Essa pergunta, que já muitos fizeram, não trouxe consigo a resposta nem a respectiva chave. Por isso ainda poucos conseguiram mover as tais montanhas com a fé.
Assim ficou aquele casal – porque de um casal a sério estou a falar, dado que ainda nenhum deles saiu de casa para provar outras frutas – um pouco mais de tempo, na cozinha com o reposteiro de fitas e a desolação da mulher que fora encontrada morta nove anos depois de ter morrido…
A mulher a sair daquele marasmo que os acometeu: – Manel, achas que eles disseram a verdade? E o seu Manel a responder: são disparates para enganar a gente; assim como nas eleições, sabes Lucinda?, quando dizem que não vão aumentar o pão, o leite e outras coisas que a gente precisa para encher o bucho – a mulher a interromper: – não se diz bucho, é barriga; já te disse que as palavras têm de ser bem tratadas! – e o seu homem a continuar, e depois fica tudo mais caro. Não vale a pena ouvir estas coisas. Aquela gente da cidade quer sempre assustar-nos, fazer-nos de parvos.
Assim parecia encerrada a estória da mulher encontrada morta, em casa, ao fim de nove anos.
A noite chegou. Lucinda esperou que Manel viesse do seu trabalho na fábrica já com a ceia quente – plena de carinho, como são todas as ceias feitas por mulheres confiantes em matrimónios “até que a morte nos separe” – e abriu o televisor. Ficou suspensa da nova notícia que o jornalista debitava, com a naturalidade de quem fala de favas ou feijões: – Um idoso, de setenta e dois anos, encontrado morto em casa; a morte terá ocorrido há três meses.
A porta, até agora encostada, a abrir-se. O seu homem a entrar. E Lucinda perdida dentro daquela voz: “morto há três meses…setenta e dois anos…”. E balbuciava baixinho palavras de desolação, de desgosto pela solidão daquelas pessoas que partiram sem outro ser humano ao seu lado.
Manel, também admirado olhava: ora o aparelho das notícias, ora a mulher que parecia não o ver.
Lucinda, então, saindo daquele marasmo disse em soluços: Que País é este, Manel, que País é este?!…
Profª. Maria da Conceição Brasil mcbrasil2005@hotmail.com
14/02/2011