Haverá melhor forma de começar uma reportagem sobre a importância do polvo no Algarve do que marcar um encontro, ainda em Lisboa, para a nova rotunda que homenageia esse molusco com uma enorme escultura em ferro, logo à entrada de Quarteira? Pode até ser só simbólico, mas o homem que nos espera, José Agostinho, é mesmo o melhor isco para entrarmos no assunto. Aos 50 anos, preside à Associação dos Armadores de Pesca do Polvo do Algarve (Armalgarve) e gere dois barcos dedicados à apanha do bicho. Hoje, raramente embarca para controlar os milhares de armadilhas que tem espalhadas ao largo da terra onde nasceu – leva à lota 21 toneladas por ano. Iremos nós por ele espreitá-las, mar adentro, mais logo ao cair do dia.
Ainda é de manhã, mas as negociações na lota começaram bem cedo e o preço do dia já estava estipulado quando chegámos à dita rotunda: entre €7,3 e €4,9, dependendo do tamanho. Diz-nos Agostinho que o polvo no verão “perde o preço” e que a “loucura” agora é mesmo com a sardinha (de maio a agosto o cefalópode está em desova e durante esse período não se mexe; logo, é mais difícil de apanhar). No entanto, sabemos através de dados da Docapesca que o polvo já é a espécie que maior valor económico gera (apesar de ser apenas a quarta mais capturada). Oitenta por cento dos animais que vão à lota (há muitos que saem do mar diretamente para o comprador sem serem registados) não ficam em Portugal. Espanha é o maior comprador, mas o Japão anda a tentar que os animais algarvios cheguem ao outro lado do planeta ainda vivos. Não admira. Diz quem sabe que o polvo do sul do País, por se alimentar essencialmente de marisco e peixes pequenos, ganha características especiais. A viver num mar limpo e rico em comida, não tem de se esforçar muito para obter o que precisa, resultando num animal pesado, saboroso e com tentáculos gordos.
Em tanques espalhados pelos sete hectares da Estação Piloto de Piscicultura de Olhão, fizeram-se testes para avaliar se era possível encher os aquários dos bares de sushi japoneses com espécies nacionais. Florbela Soares, bióloga marinha do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), coordenou o projeto Transpolvo, que nasceu para investigar a melhor forma de exportar o animal vivo (viabilidade, transporte e custos). Em seis meses, compraram-se tanques e refrigeradores para baixar a temperatura para os oito graus, como se de um porão se tratasse, e fizeram-se ensaios. As conclusões, importantes para que o transporte resulte num sucesso, foram aparecendo. “Percebemos que era preciso sujeitá-los a um jejum de 12 horas para que não regurgitassem. Por outro lado, como os polvos são territoriais – quando ameaçados, mordem – tivemos de arranjar tubos com rede para que não se agredissem nem libertassem tinta, que poderia contaminar a água do transporte.”
No final do ano passado, e depois de avaliado o stresse a que estavam sujeitos, concluiu-se que é possível transportar, com êxito, até 100 quilos de polvos por metro cúbico de água. No entanto, até hoje, passados sete meses sobre estas conclusões, ainda não foi enviado um único animal para o Japão. António Sykes, biólogo da Universidade do Algarve, também foi contactado para dar o seu parecer acerca desta aventura intercontinental, devido à sua experiência em enviar animais vivos para fora do País. Depois de se debruçar sobre o assunto, comprovou que é possível fazê-lo, claro, mas que o custo associado ao transporte será demasiado elevado em relação ao valor por quilo (ao contrário do atum, que já se exporta para o Japão). “Penso que não é bom negócio para polvos grandes como os que se apanham aqui no Algarve.” O assunto, porém, não está fechado. A ideia é conseguir mais financiamento para continuar com a investigação.
Pô-los na engorda
Até pode ser que nunca chegue a aterrar um polvo vivo no Japão, mas ao menos esta investigação serviu para estimular a atividade. Agora, o vice-presidente da Armalgarve quer lançar-se numa aquacultura experimental. Se a licença vier, em três tempos instalam-se gaiolas junto aos portos de pesca, onde os polvos estarão na engorda – alimentados apenas com produtos do mar. “Queremos acautelar os juvenis, que muitas vezes são capturados para o mercado negro, e também atenuar as quebras abruptas de compra, mantendo um preço mais estável durante todo o ano”, nota João Guerreiro.
Florbela Soares conhece bem estas intenções. Aliás, se a ideia da aquacultura for para a frente, o IPMA quer estar ao lado, a experimentar, porque não existe nenhuma estrutura deste tipo em Portugal. “Os pescadores dizem-nos que há uma grande quantidade de polvos pequeninos que não chegam a adultos. Ao engordá-los em jaulas estamos a protegê-los, pois alguns serão devolvidos ao mar”, assegura a especialista.
Paralelamente, João Guerreiro anda a seduzir os pescadores para outros rumos. “Gostávamos que não se vendesse tudo em bruto. O melhor polvo do mundo pode ser transformado, sem perder valor.” A ideia é pôr a funcionar três pequenas unidades de produção ao longo do Algarve para que o pescado seja cozinhado, embalado em vácuo, congelado, ou posto em conservas. Junto a estas fábricas, haverá restaurantes para promoção dos petiscos. “Só faltam os licenciamentos”, lamenta.
Fernando Mangas, 65 anos, não é pescador, mas já se adiantou. Há dois anos, abriu uma unidade de transformação em Santa Luzia, a denominada capital do polvo desde finais da década de 1980, a dois passos do seu restaurante, a Tasquinha Casa do Polvo. É lá que lava, coze, congela e embala os polvos que compra aos pescadores, na lota. “Gastava 120 mil euros em polvo ultracongelado que vinha da Tanzânia para comprar as 15 toneladas que consumo no restaurante”, revela. Não custa a crer, depois de se deitar um olho à ementa: há croquetes, rissóis, pataniscas, à galega, em salada, arroz ou açorda, hambúrguer, carpaccio, assado, de caril, com esparguete, à fricassé ou à tasquinha…
Quando o mar se nega aos polvos
Há manhãs que são uma desolação em Santa Luzia. A lota, que por volta das 11h30 deveria estar ao rubro, com a meia dúzia de compradores (quase todos espanhóis) a negociarem o preço como se de um leilão se tratasse, está completamente vazia. Naquela pequena terra, a dois quilómetros de Tavira, todos os seus 1500 habitantes se relacionam com o polvo. Até na loja de souvenirs, Vítor Santos, 36 anos, modela tentáculos em barro para vender a 20 euros por peça. Aqui há cerca de 30 barcos ancorados na Ria Formosa, e todos para o mesmo fim. Num dia normal de verão, conta Hugo Pereira, 39 anos, funcionário da Docapesca, registam-se duas toneladas de polvo. E nunca sobra nada.
Mas em dias como o de hoje, em que os pescadores não saíram para o mar por causa do levante, só se encontram os reformados a queimar horas numa mesa de sueca ou a remendar armadilhas estragadas. António Vieira, 76 anos, está desde as seis da manhã a “preparar as artes”. Duas velhas camisolas em cima das pernas protegem-no do ferro que encosta aos joelhos. As suas mãos ainda asseguram a perícia necessária para apertar bem a rede, enquanto ouve, bem alto, a música que a rádio local debita. As duas mil armadilhas são do filho, que ele já não vai à água há muitos anos. A memória ainda não apagou os alcatruzes de barro que lançava ao mar e os de plástico que vieram substitui-los. “Dantes era tudo puxado à mão e íamos em barcos à vela. Se não havia vento, remava-se”, recorda.
A bordo do 24 horas, um dos barcos de José Agostinho, já é tudo mecânico. Mas não deixam de ser precisos seis braços despachados para fazer o trabalho de recolha e reposição das armadilhas a cerca de três milhas da costa. A faina começa pelas 19h30, quando o sol já não castiga e o vento parece acalmar. José João, 62 anos, Luís Bota, 30, e Marco Quitéria, 35, estão bem protegidos com fatos impermeáveis e luvas. O mestre Manuel Pacheco, 52 anos, vai ao leme, na minúscula cabina, de calções, camisola sem mangas e chinelos (haverá de se cobrir com um polar e calças). Todos fumam. Muito. Mas são como uma máquina sincronizada: José agarra a armadilha que é puxada mecanicamente por uma roldana, lança-a para dentro do barco, Luís agarra-a, enche-a de isco (cavala salgada) e atira-a para as mãos de Marco, destinadas a empilhá-la num organizado monte que vai tomando conta do convés. De vez em quando, lá aparece um polvo (“bicho, bicho!”), que Luís segura com à-vontade para o guardar num bidão azul. Ao fim de mais de 600 armadilhas, estavam lá pouco mais de 20 animais. Manuel nunca deixa o barco parar. Não há estabilidade para os homens do mar, que depois de uma semana disto levam para casa entre 150 e 200 euros. Luís come uma sandes e bebe um iogurte (que antes o ajudara a engolir o comprimido para o enjoo), acomodado onde parece impossível haver conforto. Acende mais um cigarro, antes de voltar tudo ao mesmo. “Já viram ali as luzes da Quarteira? Parece Miami”, troça o mais bem disposto deles, já com o céu bem cerrado, mas com muitas horas de faina pela frente para que o polvo não falte à mesa dos restaurantes – como nos aconteceu ao almoço do dia seguinte, na popular Noélia, em Cabanas de Tavira.