Quando tinha 12 anos, depois das aulas, Paulo Ribeiro ia sempre almoçar ao restaurante do tio Cassiano. Comia um bife recheado com queijo e fiambre, que mais não era do que o cordon bleu francês, um prato “muito moderno para a época”, lembra agora, passados 40 anos. Após as férias, Paulo também costumava ir ajudar no dito restaurante, o Bota Alta, no Bairro Alto. À noite, sentava-se no degrau da entrada, a ver quem ia ao Frágil, a discoteca vizinha onde a Anamar era porteira. Gostava de ver aquela “gente extravagante”, como Rui Reininho, Miguel Esteves Cardoso ou Rogério Samora. No Bota Alta as cantorias começavam depois de as portas fecharem. “Lembro-me da noite em que a fadista Ada de Castro até fez chorar as prostitutas da rua, tal era a desgraça da letra”, conta Paulo Ribeiro que, hoje, após a morte do tio, há 13 anos, é um dos sócios do emblemático restaurante. Em 1985, fazia-se notícia de página inteira no Diário Popular sobre a noitada com Caetano Veloso, Maria da Fé, Rui Veloso e a atriz Paula Guedes. Aos almoços, o ambiente era simpático, apesar de, às mesas, se sentarem jornalistas de todas as publicações ali à volta (Diário Popular, A Capital, Record, A Bola, Diário de Lisboa). “As pessoas vinham aqui para verem e serem vistas. Ficavam horas na fila de espera que ia pela Rua da Atalaia fora”, descreve Paulo Ribeiro, que sempre resistiu a mudar quer a ementa, quer a decoração. Por isso, as paredes continuam cheias de desenhos, alguns feitos nas toalhas de papel, como o Tony Silva de Herman José e outros do arquiteto paisagista brasileiro Burle Marx, dos artistas Jorge Rosa, José de Guimarães, João Cutileiro e Lagoa Henriques, dedicatórias da atriz Irene Isidro e do apresentador de televisão Júlio Isidro.
Além do ambiente vibrante e dos sabores genuínos, o espírito do Bota Alta em muito se deve ao seu fundador, António Cassiano, um bon vivant, homossexual assumido, homem de riso fácil, sempre pronto a contar uma anedota, querido entre a vizinhança. Regressado de Angola, onde tinha uma camisaria, logo a seguir ao 25 de Abril de 1975, António Cassiano deu a mão a toda a família. Foi graças ao seu espírito empreendedor que, com as irmãs, a 24 de junho de 1976, abriu um dos restaurantes de cozinha tradicional portuguesa com mais carisma de Lisboa.
Bota Alta > Tv. da Queimada, 35-37, Lisboa > T. 21 342 7959
O bacalhau dos políticos
Espírito empreendedor era o que não faltava também a António Pereira. Natural de S. Jorge da Beira, na Covilhã, aos 20 anos, partiu num navio com outras mil pessoas para Moçambique. Quando chegou a Lourenço Marques, atual Maputo, tinha feito mil amigos, os mesmos que haveriam de frequentar os seus restaurantes – primeiro, o Oceania, na praia da Polana, mais tarde, o Leão d’Ouro, no Alto Maé, onde ficou 22 anos, com três salas abertas 24 horas e 70 empregados. Tudo corria de vento em popa até ouvir o discurso, de 3 de fevereiro de 1976, do presidente Samora Machel que antecedeu as nacionalizações.
Para António Pereira, estava na hora de voltar para Lisboa. Na tentativa de reencontrar os seus amigos e clientes de Moçambique, que por essa altura também regressavam, abriu uma tasca ali para os lados das Avenidas Novas, a que chamou Laurentina, nome dos moradores de Lourenço Marques e da conhecida cerveja moçambicana. Ficava na porta ao lado do atual restaurante, só com um balcão à entrada, grelha à porta e sala no fundo. O Laurentina evoluiu e marcou a diferença na oferta gastronómica da capital com os seus pratos de bacalhau a custarem à volta de 2000$00. “Nasci pobre com boca de rico”, dizia António Pereira, em 1980, ao jornal A Capital. “Nos primeiros anos havia filas à porta e chauffeurs à espera dos políticos”, lembra Marco Pereira, que, com a irmã Rita, assumiu a liderança do restaurante depois da morte do pai, em 2014. A posta alta de bacalhau para a couvada servida num tacho de barro mantém-se e o cabrito assado também. Além da qualidade do peixe, é na demolha que está o grande segredo, além de continuarem a usar ingredientes da serra da Estrela, como o azeite O Português, vinho Alpedrinha, couves do Fundão, queijos da serra, cabrito da Beira Baixa.
A Laurentina > Av. Conde Valbom, 71 A, Lisboa > T. 21 796 0260
Uma Estrela Michelin
Jorge Vale também não esqueceu as suas raízes, alentejanas de Montemor-o-Novo, quando abandonou as artes de palco para se dedicar à restauração. Mesmo depois de abrir a Casa da Comida, o ator e encenador que trabalhou na Casa da Comédia, ainda entrou nos filmes A Confederação: O Povo É Que Faz a História (1978), de Luís Galvão Teles, Manhã Submersa (1980) e O Vestido Cor de Fogo (1985), ambos de Lauro António, mas depois teve de optar. Em 1975, com 36 anos, decidiu abrir a Casa de Pasto Flor da Castilho, numa cave escura e sinistra.
A brincadeira durou um ano e continuou, depois, para os lados das Amoreiras. A 18 de junho de 1976, nascia a Casa da Comida, numa alusão ao nome da companhia de teatro onde trabalhou. Inicialmente, a atriz Margarida Carpinteiro foi uma das sócias. Jorge Vale idealizou um restaurante diferenciador com um serviço requintado. “Só na sala eram 12 empregados fardados a preceito, um para apanhar o guardanapo, outro para varrer as migalhas, e apenas quatro pessoas na cozinha”, recorda Rogério Alcântara, casado com Salomé, a sobrinha a quem Jorge Vale deixou o restaurante quando morreu, em 2008. De forma cénica, os pratos vinham para a mesa todos ao mesmo tempo e as campânulas eram destapadas em uníssono.
Da extensa ementa da Casa da Comida havia inspirações portuguesas e francesas, muito por culpa da “espionagem gastronómica” que o “tio” gostava de fazer. “Ele viajava até França, Espanha, Itália e Grécia, tentava ir aos melhores restaurantes e trazia ideias. Sempre foi um autodidata, sem ser um grande cozinheiro, sabia transmitir muito bem o que queria”, conta Rogério. Ali comia-se foie gras, escargots, angulas, caviar, tamboril com limão e alho francês, raia com molho de framboesa, sopa de crustáceos, faisão recheado com paté de fígado caseiro. Os clientes estrangeiros, principalmente os brasileiros, vinham pelos vários pratos de bacalhau, com destaque para o dos Vales, uma posta alta passada por ovo e farinha de milho, ia ao forno em azeite e era frita e assada ao mesmo tempo, ficando com o crocante de uma tempura muito fina.
A primeira vez que os Rolling Stones tocaram em Portugal, em junho de 1990, apareceram na Casa da Comida sem reserva e foi-lhes recusada a entrada. Apesar do episódio, voltaram no dia seguinte. A Estrela Michelin chegou em 1992, atraindo ainda mais clientes internacionais, além dos atores, músicos, escritores, pintores e pessoas da televisão que já frequentavam a Casa da Comida. O que Rogério e Salomé têm a certeza é que o “tio” sentiu muito quando perdeu a Estrela Michelin, em 1998. Generoso, Jorge Vale partilhou as suas receitas e, em 1999, ainda longe da atual febre dos livros de comida, publicou um volume com 500 receitas.
Casa da Comida > Tv. das Amoreiras, 1, Lisboa > T. 21 388 5376
O molho de inspiração angolana
Tal como o Laurentina, a história da Conga, a célebre Casa das Bifanas do Porto, também tem a ver com a história do País, logo a seguir ao 25 de Abril. Quando a Conga abriu, Sérgio Oliveira tinha quatro anos. O pai, Manuel José de Oliveira recorda como, nos primeiros dias, se formaram filas à porta e, em poucas horas, se esgotou o stock. “Tínhamos um produto bom, rápido e barato”, diz. Para Sérgio, o pai foi um visionário. “No Porto, não havia restaurantes que tivessem a confeção à vista dos clientes, e não se serviam bifanas”, justifica. Ainda hoje, os enormes tachos estão visíveis na montra virada para a Rua do Bonjardim, e os ingredientes envolvidos por um molho especial, extra picante, que Manuel criou inspirado nos sabores angolanos.
Após 30 anos a viver em Angola, Manuel regressou a Portugal em 1974 e, durante dois anos, andou a ver qual era o melhor lugar para abrir um negócio. O minhoto escolheu o Porto e a cidade revelou-se bem generosa. “Temos clientes diários há 40 anos”, conta Sérgio. Reféns do negócio, viviam no prédio fronteiro, para agilizar as rotinas. “Recordo-me de dormir em cima de umas grades, enquanto os meus pais trabalhavam”. As portas continuam a abrir às 9 da manhã e a fechar à meia-noite, havendo quem faça das bifanas pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar.
Sérgio assumiu o negócio há cinco anos, e foi o responsável pela grande remodelação (uniram dois prédios contíguos e cresceram em altura) e pela imagem gráfica feita em 2012, quando ainda se sentiam os efeitos da crise. “Chamaram-me louco, aqui à volta não havia nada e rezei todos os dias para que abrissem outras coisas, porque não tenho medo da concorrência.” Os turistas ouviram as suas preces e o movimento dos últimos tempos tem sido imparável. De tal forma que Sérgio planeia avançar com a comercialização do molho Conga, assim como com um franchising da marca. Sinais dos tempos.
Conga > R. do Bonjardim, 314, Porto > T. 96 963 7441, 22 200 0113