A lei é a lei, mas não é cega. Aos olhos de quem a lê, quase sempre permite diferentes interpretações. E aos olhos de quem julga, também. Por isso, é difícil traçar com certeza qual será o futuro do bebé que na quarta-feira passada foi abandonado pela sua progenitora, logo após o parto, num ecoponto da zona ribeirinha de Lisboa.
“O Estado tem a obrigação de dar o melhor possível a esta criança e é meu entendimento que isso passará por uma nova família”, defende a procuradora Dulce Rocha, magistrada durante mais de 30 anos na área da Família e Menores e atual Presidente do Instituto de Apoio à Criança. Contudo, explica, o destino deste menino dependerá dos procuradores e juízes que tomarem conta do seu caso. Poderá haver um entendimento diferente, como tantas vezes viu no passado, insistindo-se numa integração junto da família biológica. “Agora procuram o pai, depois os avós, os tios… às vezes só falta vir o periquito!”, diz, com alguma indignação, por entender que alguns magistrados ainda valorizam muito o “chamamento do sangue”, colocando em segundo plano o tão propalado “superior interesse da criança”.
E se a mãe se arrepender, se receber apoio psiquiátrico e financeiro, poderá vir a reclamar a guarda do filho que abandonou? Dulce Rocha diz que sim, pode. E tem até conhecimento de casos em que tal sucedeu, no passado. “A lei não proíbe que a criança vá outra vez para a mãe que a tentou matar.”
Haverá o pressuposto de que um ato como estes pode ser cometido num momento de grande perturbação, ou que as pessoas podem ser reabilitadas, por exemplo. Basta ver, explica Dulce Rocha, como os juízes ainda tentam inúmeras vezes, talvez muito para lá do justificável, procurar mães e pais que maltrataram os filhos e que deixaram de os visitar nas instituições de acolhimento. “Há também uma grande pressão social para que os familiares fiquem com as crianças”, nota. E não se deveria querer forçar ninguém nesse sentido, defende.
“No caso deste menino, é óbvio que esta mãe não o queria. Penso que deveria ser poupado a conhecer a sua história, no futuro, e ter a possibilidade de ser adotado e superar este início de vida tão dramático. Quanto mais cedo for para casa de um casal que se comprometa a amá-lo, melhor.”