Na correria do dia a dia não dedicamos muito tempo a pensar nos sete pecados capitais e nas suas consequências, mas como vivemos num caldo cultural embebido na tradição judaico-cristã, estas transgressões apontadas pelo cristianismo desde tempos remotos contaminam a nossa consciência de uma forma regular. Desde o pós -oucos-anos-1920 que a expressão “tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda” ganhou força, mas com a ajuda da neurociência é possível ver que, ao seguirmos uma linha moderada nas ações que podem incomodar os outros, acabamos por ser recompensados. Como quem diz – e como se lê algures no início do livro A Ciência do Pecado – “com a queda da crença em Deus, onde está o incentivo para nos mantermos do lado certo em relação aos sete pecados mortais?” A palavra ao autor, Jack Lewis, um neurocientista britânico de 41 anos, num imenso elogio ao bom senso e à moderação.
A primeira ideia que desfaz é que não é religioso. “De todo, sou ateu: o único contacto que tive com Deus foi quando, aos oito anos, pedi à minha mãe para me inscrever num coro e acabei por fazê-lo na igreja ao fundo da rua. Lembro-me que tinha algum receio que não gostassem de mim e pensassem que era o diabo, mas apenas me pediram para dizer ‘amen’ no fim das cantorias”.
Ainda assim, só tomou alguma consciência do peso da religião na sua vida quando, aos 20 e poucos anos, se apercebeu que os seus valores e as noções do que é certo e errado eram, em grande parte, influenciados pela cultura cristã – embora, reconheça, há muitas semelhanças entre as várias religiões.
“Acredito que, se tivesse sido criado na Papua Nova Guiné e alguém voltasse com a cabeça do líder de um grupo rival, a maior honra seria comer dessa cabeça humana”, e isso, no seu entender, explica na perfeição que a forma como somos criados contribui para a nossa formação como pessoa. E nem é preciso recorrer ao velhinho exemplo da cena de Indiana Jones e o Templo Perdido, de 1984, que reconstrói um jantar numa povoação no meio da Índia, onde o jantar inclui sopa de olhos, miolos de macaco e cobras vivas.
“Aos 18 anos, fiz voluntariado durante seis meses num orfanato da Malásia, integrado no Exército da Salvação. Um dia, quando me ofereceram uma iguaria local – uma sopa com pés de galinha – percebi que seria uma enorme ofensa se não comesse, embora só a ideia de o fazer me deixasse maldisposto”. E isto, sublinha o inglês, quer dizer que o cérebro humano é muito flexível, adaptando-se ao que é certo ou errado consoante a cultura em que vive – ou o que as figuras de referência da nossa vida nos ensinaram.
“Ou, outro exemplo, o primeiro gole numa cerveja é um horror, mas como é socialmente aceitável acabamos por, eventualmente, gostar de a beber. Penso que acontece o mesmo com a ética: podemos facilmente argumentar sobre o que é certo ou errado consoante é coerente com a lógica em que se vive. Há coisas que até podemos considerar que são contra a nossa natureza, mas muitas vezes acabamos por nos convencer de que é a coisa certa a fazer. É o que fazem as pessoas que julgam estar numa guerra sagrada e matam convencidas de que o que fazem está certo. Foi isso que criou os jihadistas”, salienta – embora isso não queira dizer que o cristianismo tem ideias menos loucas sobre o que está certo e o que está errado. (risos!)
Mas, então, questionar-se-á o leitor, tal como nós fizemos, o que conduz um neurocientista ateu aos pecados da religião, aos sete pecados mortais que o Papa Gregório elencou, no século VI? “Há muitas respostas sobre nós que a ciência não tem. E a verdade é que a Igreja há muito que procura compreender o comportamento do Homem e apontar-lhe os pensamentos, ações, atos e omissões que são socialmente condenavéis. Percebemos que a forma escolhida para que as pessoas seguissem as regras foi prometer-lhes que iam para o céu – e caso contrário para o inferno. Isso claro que ajudou a criar comunidades mais fortes, em que todos sentiam que deviam olhar uns pelos outros.”
O estranho, argumentamos nós depois, é que, nos últimos anos, a neurociência explicou-nos que estes “pecados”, em algum momento da existência do ser humano, nos ajudaram a sobreviver – e que este exercício que Jack Lewis propõe agora é no sentido inverso. Ele ri-se. “Para mim, deve ser tudo com moderação. Deve sempre prevalecer o bom-senso. Eu não digo que a tecnologia é boa ou má. Depende de quem a usa, com que objetivo.”
Assim, A Ciência do Pecado, edições Desassossego, é um imenso elogio ao bom-senso – que se aplica a tudo e portanto também aos “pecados capitais”. Ou seja: são necessários até determinado ponto, mas se ultrapassarem o nível socialmente aceite, podem excluir-nos. Com moderação, somos recompensados pelos benefícios. Assim, independentemente de se acreditar ou não no céu e no inferno, ter algum cuidado com esses comportamentos pode ser muito útil à nossa vida. “Sem a parte do medo, e se formos antes guiados pela razão, podemos ter uma existência bem mais prazenteira”, insiste Jack Lewis, deixando escapar um: “É um bocadinho aborrecido, não é? Mas a verdade é que acabamos por nos sentir melhor connosco, e com quem nos rodeia, quando conseguimos ser moderados”. Como se lê, algures logo no início do livro, “nenhum homem é uma ilha.”
Para lá da magia do 7
Na Alquimia, o 7 era considerado o número da perfeição, sendo o número mais poderoso da magia. Na antiguidade clássica, também estava associado à perfeição já que resulta da soma do número 4, que representa os Elementos da Natureza – Fogo, Ar, Terra e Água – com o número 3, que representa as energias Divinas (no Catolicismo, Pai, Filho e Espírito Santo). É ainda um número igualmente associado ao descanso (Deus descansou ao sétimo dia). Além disso, há mais uma série de manifestações do número 7, que representam sempre o completar de um ciclo – sejam as 7 cores do arco-íris, os 7 dias da semana ou os 7 dias de cada fase do ciclo lunar.
Sete seria ainda um número fácil de memorizar, quando se trata de pecados capitais, do seu significado e da melhor forma de os usar a nosso favor. A saber:
Orgulho
Considerado o maior de todos os pecados, é um sentimento de satisfação de alguém pela capacidade, realização ou valor de si próprio. Pode ser visto como uma atitude moralmente positiva (quando associado à honra) ou negativa, quando soa a arrogância. É verdade que uma pessoa orgulhosa se sente digna de grandes feitos e só isso pode chegar para se empenhar em alcançá-los. Mas, aponta Jack Lewis, muitas vezes só é uma virtude quando mantido em segredo, de forma a se manter uma postura equilibrada e não cair nas armadilhas do narcisismo – uma epidemia nos dias que correm, considera.
Gula
Foi essencial em tempos de carência, em que era preciso comer a mais quando havia comida, para se aguentar o jejum na sua falta. Hoje, sabemos que está mais associada ao excesso de peso do que gostaríamos e com isso à outra pandemia, a da obesidade. É ainda um “pecado” associado ao egoísmo humano, essa vontade de ter sempre mais e mais, não se contentando com o que já tem, uma forma de cobiça. Em stress, a nossa determinação a evitar o que nos faz mal fica francamente abalada. O truque para evitar cair na tentação, diz o neurobiólogo, é procurar formas eficientes de gerir o stress e, pasme-se ou talvez não, melhorar a qualidade do sono.
Preguiça
A preguiça pode ser interpretada como aversão ao trabalho, bem como negligência, morosidade e lentidão. Hipócrates, o pai da Medicina, dizia que a indolência e a falta de ocupação conduzem-nos à maldade. Mas não é, saiba-se, uma característica estritamente humana: na natureza, muitas vezes, é uma forma de preservar energia por longos períodos. Claro que o descanso – diário, sublinhe-se – é imprescindível à vida. Só não se pode cair na emboscada da preguiça pura e dura.
Avareza
Um dos grandes venenos da mente, a par da ira e da ignorância, obstáculos maiores ao conhecimento. Também conhecida como sovinice, é a dificuldade e o medo de se perder algo que se possui, como bens, materiais e recursos – e achar que perder algo pode ser um desastre. Pode até renunciar a confortos básicos e algumas necessidades, para manter o que tem. Está ainda associada ao tal desejo desmedido por mais. Mas houve também que a elogiasse – por exemplo, no campo da economia, notando que um bocadinho era sempre útil. Oiça-se Adam Smith: “Não esperamos que o nosso jantar venha da benevolência do talhante, mas sim do cumprimento dos nossos interesses.” A neuroeconomia explica o resto. “É melhor que seja uma cooperativa de indivíduos a trabalhar para ter um excedente de recursos, do que fazê-lo de forma individual”.
Luxúria
Emoção de intenso desejo pelo corpo, apego aos prazeres carnais e corrupção de costumes. E ainda lascívia e sensualidade. Na verdade, aprendemos, entretanto, com a ciência, que foi por termos pelo menos alguma luxúria que nos perpetuamos como espécie: “não teríamos passados os nossos genes, aperfeiçoados a cada geração, e teríamos desaparecido da face da terra”, como sublinha Lewis. “Só não pode tornar-se uma obsessão”.
Inveja
É, seguramente, o menos divertido dos pecados capitais. Caracteriza-se por um sentimento de angústia, ou mesmo raiva, perante o que o outro tem e a própria pessoa não tem – e gera o desejo de ter exatamente o que a outra pessoa tem, sejam bens materiais ou qualidade inerentes ao ser. A maior parte das religiões avisa sobre a inveja descontrolada – mas, assinala agora também a ciência, quando a sua manifestação é equilibrada, revela-se um farol emocional que nos avisa de uma desigualdade que nos deixa em desvantagem. Pode além disso inspirar-nos a assegurar o nosso direito a partes iguais e justas – e ainda que no futuro não tentem aproveitar-se de nós.
Ira
Para muitos psicólogos e neurocientistas atuais, a raiva é considerada uma emoção básica que pode ser definida em termos gerais como uma pretensão de causar dano e hostilizar alguém. A sua expressão é ainda associada a diversas psicopatologias. Mas saiba que, em indivíduos saudáveis, a raiva é desencadeada quando uma meta significativa é frustrada por ações impróprias de agentes externos. E pode mesmo, ao ser desencadeada por ações que nos fazem sentir ameaçados, funcionar como mecanismo de defesa.