O texto da divulgação do protesto é assertivo q.b.: “por todas as que tombaram, por todas as que sobreviveram, por todas as que vivem este inferno”. Por isto tudo, o conjunto de organizações e coletivos feministas que integram a Rede 8 de Março decidiu marcar uma espécie de buzinão nacional para este 14 de fevereiro, dia dos namorados e das namoradas. E promete repetir, por cinco cidades do país: “Não queremos flores, queremos viver!”
A justificação para a convocatória é simples: “Os estudos sobre a violência no namoro mostram-nos que uma parte muito significativa dos e das jovens não reconhece situações tipificadas como violência ou como situações particularmente graves e desajustadas a uma sociedade democrática”, o que no seu entender é suficiente para perceber que, apesar de ser crime público desde 2000, a violência ainda se encontra perfeitamente naturalizada e legitimada. “É um sinal de alarme que deve soar bem alto, porque estes dados revelam que os comportamentos abusivos começam desde muito cedo.”
O facto de estarmos ainda em fevereiro e já terem sido assassinadas 9 mulheres pelos companheiros e atuais companheiros dá mais força a este protesto. ” Se estes dados não forem suficientes para que o país perceba que há um problema muito sério a combater e resolver, então a democracia em que dizemos viver não nos serve.”
E seguem: “Nenhum país decente pode encolher os ombros perante uma tragédia que a cada dia soma mais vítimas. Nenhum país decente pode considerar normal que 85% das queixas sejam arquivadas. Nenhum país decente pode aceitar que as mulheres sobreviventes que conseguem levar o seu caso a tribunal sejam humilhadas por juízes como Neto de Moura [aludindo ao juiz do acórdão da mulher adúltera, que no fim acabou apenas por receber uma advertência]. Nenhum país decente pode consentir em ter instituições que desvalorizam este crime. “
Por isto tudo, especifica Patrícia Martins, uma das ativistas da Rede 8 de Março, responsável pela organização destes protestos, vão levantar a voz e ruidosamente: “10 minutos de barulho, porque não aguentamos o silêncio”. E em várias cidades. A saber:
Porto
15h30 | Metro do Bolhão | Ação de sensibilização
16h30 | Tribunal da Relação (Jardim da Cordoaria)
Braga
16h30 | Concentração junto ao Tribunal Judicial da Comarca de Braga
Coimbra
17 horas | Concentração na Praça 8 de Maio
Aveiro
18 horas| Concentração na Praça Dr. Joaquim Melo de Freitas
Lisboa
18 horas | Largo do Intendente
Entre as reivindicações, que serão repetidas na anunciada greve feminista de 8 de março (movimento internacional a que, este ano, se juntará também Portugal) está, antes de mais, que as nove mulheres mortas em casos de violência doméstica sejam consideradas oficialmente vítimas de femicídios; mas também que este passe a ser um crime de género e não apenas homicídio no código penal português; e ainda que o conceito de violência machista seja oficialmente adotado.
E ainda, claro, cumprir a lei: como quem diz, que “as forças de segurança cumpram o dever de proteger quem se queixa, que os agressores sejam efetivamente afastados das vítimas e que haja consequências para quem se recusa a aplicar os valores de igualdade de género inscritos na nossa constituição”.
“Ninguém sabe quantas vítimas há”
“Nem sequer há estatísticas oficiais sobre a violência doméstica, apenas dados recolhidos pelo que é noticiado e isso mostra que se esconde, um pouco por todo o lado, esta cultura de violência contra as mulheres”, remata aquela ativista, sublinhando que, ao todo, ninguém sabe ao certo quantas vítimas de violência doméstica há.
Os mais recentes dados sobre a situação da mulher em Portugal, divulgados esta semana, nos dez anos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, vão ao encontro dessa ideia: 33 % das mulheres inquiridas garantem que passaram por alguma situação de violência psicológica; 12 por cento de violência física. A violência doméstica foi ainda apontada como a segunda principal razão para o fim de um relacionamento entre as mulheres portuguesas, de acordo com o mesmo estudo: ao todo, 26 por cento das separações deveram-se a violência doméstica ou de género, envolvendo agressões ou tentativas de agressão, intimidação, ameaças, chantagem psicológica ou tentativa de relações sexuais à força.
E se a indignação já tinha saído à rua no passado domingo, dia 10, numa Marcha Silenciosa pelas Vítimas de Violência Doméstica, do Marquês de Pombal à Assembleia da República, em Lisboa, saiba que não vai ficar por aqui: a 9 de Março, o movimento Nós Por Elas garante que O Silêncio Acabou, e grita Não ao Femicídio. “Queremos mais meios a apoiar as mulheres e menos complacência com os agressores”, explica-se Helena Ferro de Gouveia (formadora, ativista de direitos humanos, analista…) que convocou este protesto no Facebook, mas não se quer ficar pelas redes sociais: “Indignação de sofá não chega.”
E parece estar no bom caminho: além de Lisboa, conta já com a adesão do Porto e de Beja, além de testemunhos vários de mulheres e homens, naquilo que considera ser um protesto inclusivo: “porque não se pode combater este flagelo sem envolver os homens”.
‘Namoro violento não é amor’
O slogan tem dez anos – fazia parte da campanha da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género para o ano letivo de 2008/2009 – mas parece que ainda não entrou de vez na cabeça de muita gente. Essa é só uma das muitas conclusões possíveis depois de se saber a que dados chegou o estudo Violência no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e Práticas, promovido pela Associação Plano i, que inquiriu 2683 jovens de ambos os sexos. Segundo o que acaba de divulgar, entre estes jovens que dobraram há pouco a esquina dos 20 e têm formação universitária, 54,7 por cento assume que já sofreu, pelo menos, um ato de violência no namoro. Além disso, comportamentos como a difamação, o recurso às redes sociais para chantagear o outro, o hábito de vasculhar no telemóvel ou nos bolsos do casaco até às agressões físicas e à coação para práticas sexuais não desejadas não são estranhos a mais de metade dos inquiridos.