Ser feliz não é um estado isento de tristeza. Ser-se saudável não é não se ser doente.
Ser-se doente não significa não se ter simultaneamente saúde.
É frequente a associação da depressão a um estado de humor melancólico e da felicidade a um estado extremo de bem-estar, como se estivéssemos perante conceitos mutuamente exclusivos.
A complexidade, bem como as evidências empíricas e fenomenológicas obrigam-nos a um olhar mais cuidadoso e, dessa forma, creio, mais feliz.
Sabemos que a depressão não é uma entidade nosográfica única, que são múltiplas as suas formas, expressões e manifestações da depressão reativa à endógena percorremos todo um caminho de diferentes graus de adoecer, onde o humor depressivo encontra lugar de destaque.
Sabemos, ainda, que conceber a ideia de que existem pessoas felizes nos obriga a pensar a complexidade do conceito que designamos por felicidade.
A felicidade, longe de ser um constructo vazio e oco, é uma construção helicoidal onde os elementos de tristeza se fazem notar.
Aliás, acredito, só é feliz quem pode estar triste.
É o excesso de “felicidade” (impossibilidade de viver a tristeza) que frequentemente conduz a estados depressivos. A pressa de se chegar a um qualquer lugar dito de sucesso, socialmente consentido e desejável, não se coaduna com a evidência de que só chega depressa quem vai devagar.
A felicidade é poder tirar partido da vida, respondendo de acordo com aquilo que nos acontece e que fazemos acontecer, é resiliência e depressibilidade (conceito enraizadamente feliz de Coimbra de Matos), é deixarmo-nos abater o suficiente para nos podermos verdadeiramente levantar.
A origem da palavra felicidade do latim felicitare “sorte, boa estrela; fertilidade, fecundidade” encaminha-nos para uma visão em que a “vontade divina” está ao serviço da expansão da Humanidade. Uma estrela interna capaz de guiar, sem ofuscar resultante de relações empáticas e complementares no início e ao longo da vida na procura de respostas psíquicas férteis e fecundas.
Contudo, tal como um terreno fértil e fecundo pode alagar ou secar, a felicidade, o ser-se maioritariamente feliz, não é certeza imunitária antidepressiva.
Existem sítios onde a esterilidade se pode instalar, sítios de dor profunda, sem resposta. Quando a espessura dos acontecimentos de vida nos despe de nós próprios e nos encontra desprevenidos, a boa estrela tinge-se de nevoeiro e os estados depressivos podem “atingir-nos”. Face a situações traumáticas agudas ou cumulativas, a possibilidade depressiva é real. Pensar que se está totalmente imune é uma atitude perigosamente omnipotente que nega o adoecer e compromete o tratamento.
É a parte saudável da mente, do corpo e da sociedade que se pode expandir e conquistar espaço à doença. É a felicidade imbuída das tristezas integradas que cria as condições para que a depressão possa ser vivida e transformada através do apoio terapêutico multidisciplinar adequado.
Quando a depressão nos atinge, o melhor é ouvi-la. a bem da felicidade.
(Artigo publicado no nº 1 da VISÃO Saúde. Mais perguntas e respostas sobre os mais variados temas na edição que está nas bancas)