Os festejos das claques que assistem ao torneio de voleibol encaixam perfeitamente no cenário do Parque de Jogos 1.º de Maio, da Fundação INATEL, em Lisboa. Destoa o cheiro intenso a caril de frango que inunda as narinas e empresta exotismo a uma amena tarde de domingo. A prova desportiva junta várias equipas, todas elas compostas por atletas nepaleses que vieram dos vários países para onde imigraram estão ali as “seleções” de Inglaterra, da Dinamarca ou da Finlândia e, claro, também existem várias formações de Portugal.
Entre o público, veem-se alguns homens e mulheres com vestes coloridas. O veludo vermelho do traje feminino de saia comprida chama a atenção. Não é o desporto o motivo para vestirem as roupas tradicionais. Hoje, a comunidade Magar (uma das várias castas nepalesas) também está a celebrar o Maghe Sankranti, uma festividade que assinala o fim do solstício de inverno. Passa uma fila de quatro jovens nepalesas sorridentes a empurrarem carrinhos de bebé. As que não são Magar vestem jeans; as outras, o traje tradicional. Uma delas é Nira Pun Rana, 24 anos, que deu à luz um rapaz há dois meses e meio. O sorriso diz tudo sobre o seu estado de graça.
Bishnu Pun, 36 anos, também pertence à casta dos Magar, mas os afazeres com a pequena Yangzom não a deixaram participar na celebração. A menina veio ao mundo a 20 de setembro e é um dos 140 bebés filhos de mãe nepalesa nascidos, no ano passado, na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa. Só as portuguesas e as brasileiras tiveram mais filhos na MAC, em 2017. A obstetra Lisa Vicente acompanha muitas mulheres estrangeiras nas suas consultas na Maternidade e, já em 2016, notava a representatividade das nepalesas. Nesse ano, dos 200 bebés filhos de mãe nepalesa nascidos em Portugal, 130 nasceram na MAC. Na consulta de diabetes, a médica recebe muitas mães de países asiáticos, incluindo do Nepal. “Pensa-se que será por razões genéticas que existe uma elevada taxa de diabetes gestacional nas mulheres asiáticas, à volta de uma em cada quatro gravidezes”, explica.
A obstetra avança, ainda, com uma hipótese geográfica para a elevada afluência de mulheres nepalesas: “Esta comunidade vive, sobretudo, em Lisboa, particularmente nas zonas de Arroios e do Intendente, que pertencem à Maternidade.” Já no Censos de 2011, a freguesia de Arroios figurava como a mais multicultural da cidade, com residentes de mais de 80 nacionalidades (seguiam-se a Penha de França e Santa Maria Maior). Este cosmopolitismo reflete-se na MAC. “Há dias em que a maior parte das minhas consultas é em inglês”, conta Lisa Vicente.
PORTUGAL, PORTA DE ENTRADA
Sem surpresas, também é na freguesia de Arroios que vivem Bishnu, a sua bebé e a filha mais velha, nascida há 16 anos ainda no Nepal. “A grande diferença entre as minhas gravidezes é que o meu primeiro parto foi muito doloroso, no Nepal não nos dão a epidural, mas aqui deram e eu não senti dores nenhumas. Fui muito bem tratada”, recorda. Bishnu também está impressionada com os apoios do Estado à maternidade. De acordo com a Segurança Social, no ano passado, 206 famílias nepalesas receberam o abono de família pré-natal, e 889 o abono de família para crianças e jovens. Curiosamente, segundo a mesma instituição, nenhum nepalês recebeu o subsídio de desemprego em 2017 e apenas cinco foram abrangidos pelo Rendimento Social de Inserção (RSI). Enquanto os dados de 2016 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) fixam a comunidade em 5 835 pessoas, a Segurança Social registou quase dez mil (9 725) nepaleses ativos no ano passado. Já o Consulado Honorário do Nepal em Lisboa estima que vivam em Portugal cerca de 20 mil cidadãos vindos daquele país. Entre 2015 e 2016, os vistos de entrada atribuídos a esta nacionalidade cresceram 26,7%.
O marido de Bishnu, depois de conseguir a nacionalidade portuguesa (pode ser pedida ao fim de 6 anos a residir legalmente no País), partiu para Inglaterra. Agora, é Bishnu quem aguarda pela naturalização. O consulado estima que cerca de três mil dos seus compatriotas já a tenham conseguido. A língua é a sua principal barreira. “Uma vez chorei no SEF porque eles não me entendiam e era muito frustrante…” O plano, confessa Bishnu, é a família reunir-se em Inglaterra, depois de serem todos cidadãos europeus. Não nega que uma das razões da atratividade do País é a maior facilidade em conseguir vistos de residência, comparativamente a outros países da Europa.
E ter filhos também facilita o processo: “Uma das minhas amigas estava à espera dos documentos há dois anos, mas depois de ter tido um bebé e de ele ter ido para a creche ficou tudo regularizado ao fim de três meses.” A lei prevê que os cidadãos estrangeiros com filhos menores residentes em Portugal ou com nacionalidade portuguesa possam pedir autorização de residência com dispensa de visto para si, desde que comprovem exercer as devidas responsabilidades parentais.
Meena Tamang Lama, 38 anos, já tem nacionalidade portuguesa. Mas não planeia ir a lado algum. Chegou a Lisboa há dez anos, um ano depois do marido, vinda de Israel, onde estava a trabalhar. Originária de Katmandu, a capital nepalesa, tirou o curso de cabeleireira, manicura e pedicure na Comunidade Hindu de Portugal. Acabava as aulas às cinco da tarde e às seis já estava no restaurante onde trabalhava como empregada de mesa. Há três anos abriu o seu próprio salão no Mercado do Forno do Tijolo, em Arroios. A filha mais velha, com 20 anos, trabalha consigo. Tem mais duas meninas, de 19 e 6 anos esta última já nascida na MAC. “Quando foi das minhas primeiras duas filhas não tive o prazer de estar grávida, mas aqui as pessoas dão-nos muita atenção quando estamos à espera de bebé. Isso é muito bom”, compara, no seu português cauteloso. Mas nem todos respeitam as dificuldades linguísticas. Uma médica do centro de saúde recusou atendê-la, a menos que estivesse acompanhada de alguém que falasse português, alegando que não estava em Inglaterra e, por isso, não era obrigada a falar em inglês com a paciente… “Só voltei lá depois de ter aprendido português.”
Hoje, está rendida à vida do bairro. “As senhoras passam pelo salão para perguntar se está tudo bem com a família. É mesmo como se estivesse em casa.” Aliás, “casa” tornou-se uma palavra-chave para quem chega e se confronta com a inflação dos preços do arrendamento na cidade. “Os estrangeiros são obrigados a viver com os filhos no mesmo quarto, porque as rendas estão caríssimas. As pessoas que trabalham aqui não têm meios para viverem longe e sofrem com esta situação”, denuncia. Em Portugal, sente que as mulheres e as crianças têm mais liberdade do que no seu país. “Na tradição nepalesa, as mulheres só trabalham em casa, mas isso está a mudar com os mais novos, sobretudo na cidade.” O Nepal elegeu, pela primeira vez, uma mulher para o cargo de Presidente, em 2015. Apesar de as suas funções serem essencialmente cerimoniais, Bidhya Devi Bhandari é uma defensora dos direitos das mulheres.
NO FESTIVAL DAS SARDINHAS
O presidente da Associação de Nepaleses Residentes em Portugal deixa-se fotografar, orgulhosamente, com a original bandeira do Nepal, no Martim Moniz, em Lisboa. Sorridente, Kuber Karki, 42 anos, mostra estar tão bem integrado que diz já saber como se responde quando um português pergunta se está tudo bem: “Vai-se andando”, diz, com ar pesaroso, antes de soltar uma gargalhada. Chegou em 2013 e conseguiu trazer a mulher e os dois filhos, de 16 e 10 anos. Tem um supermercado em Arroios e prepara-se para abrir uma guest house com outros parceiros de negócio, em Picoas. Afinal, foi gestor de hotéis durante mais de 20 anos em vários países de mundo. Em Portugal, sempre se sentiu bem-vindo. Começou por se encantar com o clima da capital, muito semelhante ao de Katmandu, onde vivia. Além disso, classifica os dois países como sendo de emigração: “No Nepal temos 30 milhões de habitantes e outros 10 milhões vivem no estrangeiro” em 2015, as remessas dos emigrantes representaram 32,2% do PIB nepalês. Depois, foram a fruta e os legumes portugueses que o seduziram. E confessa-se um fã da gastronomia portuguesa: “Adoro bifanas e vou sempre ao festival das sardinhas”, que é como quem diz aos Santos Populares.
A associação que lidera está a tentar estabelecer acordos com escolas que facilitem a aprendizagem da língua portuguesa, invariavelmente apontada como a principal dificuldade pela comunidade e um elemento fundamental na integração. Isso mesmo concluiu a investigadora Inês Branco. “Se aprenderem o português começam a integrar-se melhor e há uma expansão em cascata: os que aprendem ensinam os outros, e assim sucessivamente”, explica a docente de Português para estrangeiros na Universidade de Coimbra. Como os nepaleses desenvolvem “atividades maioritariamente comerciais”, se não falarem a língua a sua ação fica altamente limitada. Mas a integração não se faz a expensas da cultura de origem: “Considera-se integrado quanto maior for o interesse do emigrante pela cultura de destino, mantendo a ligação à sua própria cultura, ou estaríamos a falar de assimilação e não de integração.” Inês Branco nota que vários imigrantes nepaleses gostam de ir a Fátima, apesar de serem hindus (a religião predominante no Nepal, seguida do budismo).
Gita Dhakal, 32 anos, também é hindu. Tem uma pequena estátua de Shiva na secretária do escritório, no Martim Moniz. Trabalha na agência de viagens fundada pelo marido. Planeiam criar novos pacotes de viagem que ajudem a levar os portugueses, e os turistas estrangeiros que visitam Lisboa, até ao Nepal. Também são proprietários da Tasca do Marinheiro, um restaurante de comida portuguesa e indiana. O marido, Daya Dhakal, 35 anos, chegou a Portugal há oito anos. Tantos quantos Gita passou na Islândia. Só aterrou em Portugal há cinco meses, juntamente com o filho de 5 anos é ele quem a ajuda com o português. “Tem aprendido depressa na escola e ensina-me”, conta, sem esconder o orgulho. A história do casal espelha os dados estatísticos mais recentes do Observatório das Migrações. Em 2016, o reagrupamento familiar foi o principal motivo para a concessão de vistos de residência nos postos consulares portugueses a cidadãos nepaleses, representando 80,7% dos pedidos. O alto-comissário para as migrações, Pedro Calado, 42 anos, encontra aqui uma resposta para a elevada natalidade da comunidade que, apesar de ser apenas a 18.ª maior do País, foi a 9.ª nacionalidade que mais contribuiu para os nascimentos de crianças filhas de mães estrangeiras em Portugal, em 2016. “Está relacionado com o perfil muito jovem dos homens nepaleses que emigram para Portugal e, como foram a nacionalidade que mais pedidos de reagrupamento familiar fez de 2015 para 2016, significa que estão a trazer, sobretudo, as suas mulheres, daí a fertilidade exponencial da comunidade”, esclarece. À semelhança de muitos casais nepaleses, Gita e Daya Dhakal estão a planear ter mais um filho que nascerá na MAC.
EMPREENDEDORES A MULTIPLICAR
Também os dois filhos de Tanka Sapkota, 44 anos, nasceram em Portugal. O conceituado chefe de cozinha italiana foi um dos pioneiros na chegada a Lisboa. Aterrou na capital em 1996 e, assegura, foi o quarto nepalês a mudar-se para cá. Hoje, tem quatro restaurantes, três deles de cozinha italiana e um de nepalesa, e emprega à volta de 85 trabalhadores, 25 deles portugueses, embora a esmagadora maioria seja do Nepal. Tem dificuldade em contabilizar todos os familiares que já se mudaram com o seu apoio, serão trinta a quarenta. A rede de entreajuda entre os nepaleses é um dos fatores determinantes na sua integração. Agora está a tentar convencer o sobrinho de 21 anos a ficar por cá. Basanta Poudel veio estudar Engenharia Informática no Instituto Superior Técnico.
Tanka já levou oliveiras para o Nepal e garante que as cerejas e os pêssegos também se dão lá muito bem. Nos seus canteiros de Lisboa plantou, por exemplo, manjericão nepalês. Já os sogros, renderam-se à “bica” e queriam levar uma máquina de café para o Nepal. “Tive sempre sorte com muito trabalho”, afirma, com uma boa-disposição contagiante.
Mas nem sempre a integração é tão fácil. O jovem Manjeel Rijal, 19 anos, veio para Portugal depois de o pai cá ter morrido – muitas vezes a comunidade une-se e patrocina a transladação para o país natal. Ao princípio, Manjeel não gostava de nada, sobretudo de não arranjar trabalho. Ao fim de 6 meses, o chefe Tanka ofereceu-lhe um emprego e ele passou a gostar de cá viver. Conhece vários casos de quem se foi embora após obter a nacionalidade portuguesa, mas é o patrão quem elabora sobre a questão: “Depois de cá chegarem, se os nepaleses conseguirem um bom emprego ou tiverem uma boa ideia de negócio, percebem que o melhor país da Europa para se estar é Portugal.”
O alto-comissário para as migrações não vê que Portugal funcione como uma espécie de plataforma giratória. “Criando cá negócios, empregando membros da comunidade, as pessoas mostram que querem ficar. Se houvesse a intenção de circulação a curto prazo, não investiriam o capital que têm na abertura de um negócio. E o sinal de terem filhos, que dentro de pouco tempo serão portugueses, faz com que ganhem fixação.” Em 2015, contavam-se cerca de 40 empresários nepaleses, muitos com mais do que uma empresa, mas este número deverá ser hoje bastante mais elevado.
Kamal Gurung, 38 anos, chegou há mais de uma década. A mulher, Arati Gurung, 36, juntou-se-lhe há quatro anos. A filha adolescente também vive em Portugal. Kamal abriu um restaurante de sushi no Barreiro, no início do ano, e Arati tem um centro de massagens tailandesas em Alvalade ainda exploram um hostel nos Anjos. Antes de abrir o restaurante, Kamal angariava trabalhadores agrícolas para quintas do Alentejo ao Algarve. Chegou a servir de intermediário a mais de 300 pessoas. “Era muito difícil. Às vezes os donos das quintas não pagavam e era preciso andar em cima deles.” Mas não estava disposto a tudo: “Quando baixavam muito os preços, não valia a pena pôr lá os trabalhadores.” A família viveu seis meses na Zambujeira do Mar e Kamal também trabalhou no campo para perceber melhor como tudo funcionava. Fechou a empresa no ano passado e não tem saudades daquele tempo.
O cônsul honorário em Portugal, Makar Bahadur Hamal, 48 anos, considera que, nos últimos dois anos, as condições de trabalho na agricultura têm vindo a alterar-se. “Ainda não está tudo bem, mas está a melhorar.” Em Odemira, zona especialmente procurada para a instalação de estufas, residem cerca de dois mil nepaleses.
Babi Jirel, 24 anos, vive com o marido numa casa partilhada com outros seis compatriotas. Todos trabalham, exceto Aashima Budal, 26 anos, que está a fazer um mestrado. Babi continua ansiosamente à espera do seu visto de residência “pago impostos todos os meses”, sublinha e a sua vontade é ficar em Portugal. Confessa que é muito frustrante serem obrigados a desperdiçarem dias de férias sempre que é preciso ir ao SEF ou a qualquer outra instituição pública. “Mas nem temos muitas saudades do Nepal, há tantos nepaleses aqui, é como se estivéssemos em casa.” O casal ainda não tem filhos, a família só deverá crescer daqui a dois ou três anos. O marido esteve oito meses desempregado, Babi diz ser difícil conseguir trabalho sem se conhecer alguém. Vestida a rigor para a celebração do Maghe Sankranti, ilustra a vontade de festejar dos nepaleses. “Os meus amigos portugueses dizem que os nepaleses gostam muito de festejar, não se importam se são festas chinesas, portuguesas, nepalesas… Querem é celebrar!” A amiga Aashima dá-lhe razão: “Nós somos de castas diferentes e festejamos a cultura uma da outra.” Não surpreende, assim, que tenham ido juntas às celebrações no INATEL.
Aashima confessa que a cozinha portuguesa é demasiado suave para o seu palato… E foi um choque quando percebeu que os cumprimentos nacionais envolvem abraços e beijos. Com uma elegância natural, junta as mãos sobre o peito e ensaia o cumprimento nepalês: “Namasté!”
O BERÇO DA CAPITAL
Nascimentos na Maternidade Alfredo da Costa, por nacionalidade da mãe
Portuguesas: 2 806
Brasileiras: 165
Nepalesas: 140
Angolanas: 96
Cabo-verdianas: 74
Guineenses: 48
Chinesas: 47
São-tomenses: 46
Indianas: 41
Bangladeshianas: 33
Romenas: 23
Ucranianas: 23
TOTAL 3 673
FONTE Maternidade Alfredo da Costa (2017)