Em 1998, Lisboa abria orgulhosamente as portas da sua Exposição Mundial dedicada aos Oceanos, comemorando os 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia. A milhares de quilómetros, e longe dos holofotes mediáticos, uma equipa de mergulhadores, liderada pelo britânico David Mearns, detetava no fundo do mar do Sultanato de Omã vestígios do que poderia ser o navio mais antigo da época dos Descobrimentos alguma vez encontrado: uma das duas embarcações capitaneadas pelos irmãos Brás e Vicente Sodré, tios de Vasco da Gama, que partiram de Lisboa em 1502, na chamada 2ª Armada da Índia.
David Mearns conta que se sentiu “tentado” a viajar para Portugal nesse verão para anunciar a descoberta. Mas, apesar da documentação histórica reunida pelo arqueólogo português António Camarão, que fazia parte dessa expedição, e das evidências encontradas na ilha de Al Hallaniyah, recuou: “Considerei prematuro fazer esse anúncio sem ter mais factos para apresentar. Seria necessário prosseguir as escavações e os estudos e tive também receio de que, perante tal anúncio, alguns ‘predadores’ fossem para o local tentar apoderar-se do que ali existia.” O britânico mergulhava com financiamento de um “mecenas internacional” com “boas ligações ao Sultanato de Omã” mas que não se dispôs a financiar uma extensão das prospeções. E Mearns teve de abandonar as ilhas de Cúria Múria, como os portugueses de Quinhentos as descreviam, e regressar a Londres.
Na direção da empresa de salvados Blue Water Discoveries, seguiu para outras paragens, recuperando artefactos de navios modernos. Mas, assegura, os despojos dos barcos dos irmãos Sodré não lhe saíam do pensamento. Porquê, se ali, ao contrário de outros naufrágios dos Descobrimentos, não haviam tesouros para descobrir? Que interesse teria para uma empresa privada, especializada na recuperação de objetos com valor para irem a leilão?
“Desde o início, o lucro não era o que me motivava. Queria muito evoluir para a prospeção de navios históricos e foi por isso que perguntei ao António Camarão: ‘Se pudesses ir à procura de um navio, em qualquer parte do mundo, qual escolherias? E ele falou-me dos navios dos irmãos Sodré.” O São Pedro terá sido cuspido para terra pela tempestade e posteriormente queimado, para recuperar o seu pregado. A Esmeralda afundou-se repentinamente perto da costa, arrastando consigo as vidas de todos os tripulantes. “Esta nau tem uma importância enorme por ser uma das oito embarcações do século XVI localizadas em todo o mundo e por ser, também, a mais antiga, de que há conhecimento, a naufragar no Índico. Além disso, devido à sua localização remota, dava-nos garantias únicas de que o sítio não teria sido devassado”, explica (ver entrevista).
Em 2003, quando passavam 500 anos do naufrágio em Omã, este biólogo marinho de formação apresentou a sua descoberta na Universidade de Plymouth, no Reino Unido, numa conferência internacional sobre naufrágios. Desde então, procurou reunir as condições para regressar a Omã, mas, afiança, tal só foi possível em 2012, quando o sultanato criou um departamento de arqueologia subaquática. Nessa altura, conseguiu firmar uma parceria com o Ministério da Cultura de Omã e obter também financiamento da National Geographic e da Fundação norte-americana Waitt.
O britânico cumpriu finalmente o sonho de voltar a mergulhar nas águas de Al Hallaniyah no verão de 2013. Os trabalhos de prospeção prolongaram-se por dois anos, tendo sido recuperados quase três mil artefactos do local, entre eles um sino de bronze, datado de 1498, balas de canhão com as iniciais VS (o que poderá representar o nome do capitão, Vicente Sodré), um disco de bronze com as armas de D. Manuel I e a esfera armilar, pedaços de cerâmica portuguesa do início do século XVI, sete cruzados de ouro da época e um conglomerado de moedas de prata que escondiam um tesouro: um “índio”, de que até hoje se conhecia apenas um exemplar, em exposição no Museu Nacional brasileiro, no Rio de Janeiro.
Essa moeda, descoberta no meio da amálgama de prata com recurso a técnicas de raios X, foi identificada primeiro pelo numismata português António Miguel Trigueiros e, mais tarde, por João Pedro Vieira, numismata do Banco de Portugal. Quando Trigueiros viu as imagens, o seu coração parou por instantes. Depois correu a dar a boa nova: “David, você vai ficar famoso… encontrou a moeda-fantasma de D. Manuel I.”
Esta moeda, com contornos sebastiânicos, é de fácil identificação, explica, por ser a única em que o rei D. Manuel mandou escrever “Primus” (primeiro), em vez de P. ou I, como nas moedas cunhadas nos anos seguintes. Foi apenas produzida entre 1499 e 1504 e terá seguido na 2ª Armada da Índia, capitaneada pelos irmãos Sodré, para fazer um “teste de mercado” na compra de especiarias. “Como era muito pequena e leve, com apenas 3 gramas, não foi valorizada pelos mercadores. Seriam precisas muitas moedas daquelas para pagar uma tonelada de pimenta. D. Manuel I decidiu por isso parar de a produzir e fazer “índios” com 10, 20 e 30 gramas.”
Além da raridade, o “índio de prata” ganhou outro valor para a equipa em Omã: era uma “prova sólida” de que mergulhavam, de facto, no local do naufrágio da Esmeralda. Em seguida, outras peças do puzzle começaram a encaixar, tal como defendem num artigo científico publicado no início de março deste ano no Internacional Journal of Nautical Archeology. Um disco de bronze, que poderá ser parte de um instrumento de navegação ou de um conjunto de pesos da época, tinha as armas de D. Manuel I. Uma das balas de canhão, de origem calcária, foi estudada por Miguel Magalhães Ramalho, diretor do Museu Geológico de Portugal, que conseguiu determinar a sua origem em pedreiras da zona de Lisboa do séc. XV/XVI.
Os fragmentos de cerâmica encontrados, estudados pela arqueóloga Tânia Casimiro, da Universidade Nova de Lisboa, eram de várias origens (portuguesa, espanhola, italiana, oriental) mas coincidiam todos com datações do início do séc. XVI. Além disso, explica a especialista em cerâmica, “existiam outros utensílios, como frigideiras de pegas triangulares, que eram usadas no final do séc. XV”. E, sobretudo, não foi encontrado um único fragmento de faiança. “Isto é importante porque a faiança portuguesa está espalhada por todo o mundo e é quase impossível não a encontrar. Mas só começámos a produzi-la a partir de 1550. Por isso, faz sentido que este navio seja anterior a essa data.”
Tânia Casimiro foi uma das raras arqueólogas portuguesas que aceitou trabalhar na equipa de David Mearns. Ele contactou muitos mais, assegura. Mas recebia uma de duas respostas: ou não, ou silêncio. A arqueóloga explica que aceitou ir a Omã dar o seu parecer sobre as peças porque foi convidada pelo Ministério da Cultura do sultanato e que essa foi a entidade com quem trabalhou quando viajou para o país, em janeiro deste ano. “Sou muito contactada por caçadores de tesouro para fazer avaliações de cerâmica e digo sempre que não. Neste caso, apesar do diretor do projeto ser de uma empresa privada, trabalhava sob dependência do Governo omanense, que me assegurou respeitar as regras da Convenção da UNESCO”, no que à proteção do património subaquático diz respeito. “É verdade que Mearns não é arqueólogo mas contratou arqueólogos para a equipa e soube rodear-se de especialistas em várias áreas”, considera.
O arqueólogo subaquático Alexandre Monteiro, também da Universidade Nova, foi um dos que recusou os convites de David Mearns e discorda da colega. “Não é verdade que estejam a ser cumpridas as regras da Convenção da UNESCO. A regra 22 dita que ‘as intervenções sobre o património cultural subaquático só podem ser realizadas sob a direção e o controlo de um arqueólogo qualificado, com competência científica adequada ao projeto’. David Mearns não é arqueólogo nem tem competência científica para liderar uma escavação relativa a um contexto português do século XVI”.
Também Luís Filipe Castro, um dos mais reputados investigadores em arqueologia subaquática a nível mundial, professor na Universidade A&M do Texas, nos EUA, considera que o facto de o projeto ter sido liderado por um “caçador de tesouros” descredibiliza a investigação. “Terá sido por isso que muitas pessoas não quiseram associar-se. A arqueologia não pode ser feita por terceiros com arqueólogos a trabalharem para eles. Quantos médicos aceitariam fazer uma cirurgia se na sala de operações estivesse um gestor ou um economista a dirigir?” De qualquer forma, Filipe Castro considera que “este poderá mesmo ser um dos navios da armada do Vicente Sodré”, o que é “uma descoberta extraordinária, com imenso interesse histórico e científico”. Também Roger Crowley, historiador britânico que acaba de lançar a obra Conquistadores – Como Portugal criou o primeiro império global (Editorial Presença), considera a descoberta de “um enorme interesse histórico”.
Já Alexandre Monteiro, que mergulhou em Omã em outubro de 2015, integrado no projeto MASO (Maritime Archaeological Survey of Oman), a convite do sultanato e integrado numa equipa de investigação de universidades britânicas e australianas, buscando outra nau portuguesa ali naufragada em 1546, considera “abusivo” dizer-se que todos os artefactos encontrados são da Esmeralda. “Não podemos ignorar o facto de estarmos perante um antigo local de ancoradouro, palco de vários naufrágios. Até porque há ali cerâmica oriental, que poderia estar a bordo dos navios dos Sodré mas que também abunda por todo o território omanense desde o século IX d.C. Sempre que duas embarcações naufragam no mesmo local (originando uma contaminação de contextos pela sobreposição de depósitos), só em casos muito excecionais se poderá dizer que artefactos provirão de uma e quais provirão de outra.”
E, Portugal, onde fica em tudo isto? Formalmente, poderia até reclamar todo o espólio encontrado, pois a soberania sobre os navios de Estado, como eram as naus da Armada da Índia, ultrapassa a convenção da UNESCO, sobrepondo-se ao direito sobre os achados em águas territoriais. Espanha já fez valer esse argumento a respeito de galeões seus explorados noutros países, tal como a Holanda, em relação a navios da Companhia das Índias Orientais.
Apesar de um acordo cultural assinado em 1982 entre o Governo do Sultanato de Omã e o Governo da República Portuguesa, de forma a encorajar a cooperação nos domínios da educação, ciência e cultura e obrigando-se as partes a tomar as medidas apropriadas de restauro e preservação do património de interesse comum, não houve, por parte das autoridades omanenses, qualquer contacto formal com Portugal (o Ministério da Cultura do sultanato também não respondeu às questões da VISÃO).
Contudo, David Mearns tentou, como diz, “estabelecer pontes”. Nesse sentido, aterrou em Lisboa, em agosto de 2014, para se reunir, a seu pedido, com quatro técnicos na Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), entre eles o diretor do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), Pedro Barros, e a própria diretora-geral. David Mearns assegura que partilhou toda a informação que tinha, mas que, depois disso, e apesar da “cordialidade da reunião”, não voltou a ter notícias. A diretora-geral da DGPC, Paula Araújo da Silva, revela uma versão ligeiramente diferente: “Antes, durante e depois desta reunião, não foram fornecidas informações documentais sobre os trabalhos realizados. Na altura, foi referido pelo responsável do projeto que o contacto estabelecido era informal e que o Estado português deveria aguardar o contacto das entidades de Omã, o que até ao momento não veio a acontecer.” Além disso, acrescenta, “Mearns nunca chegou a remeter qualquer informação escrita sobre o seu trabalho em Omã, apesar desta ter sido solicitada pela DGPC por email.” Paula Araújo da Silva esclarece que o britânico foi questionado “sobre a oportunidade de, numa futura campanha, poderem vir a ser incluídos técnicos da DGPC” e que essa ideia foi bem acolhida. “Todavia, nunca chegou à DGPC/Estado português qualquer contacto formal nesse sentido.”
Só “em finais de 2014”, adianta, “houve um convite para a direção da DGPC visitar Omã”, integrada numa visita de Estado. “Desconhecem-se, todavia, as razões do cancelamento desta visita e se este assunto constava na agenda”, lamenta a diretora-geral, reconhecendo que também “nunca estabeleceu qualquer contacto formal com o Estado omanense”. Contudo, após o anúncio desta descoberta, têm havido reuniões frequentes entre o Ministério da Cultura e o Ministério de Negócios Estrangeiros, tentando uma aproximação diplomática ao Sultanato de Omã. O ministro João Soares tem estado em contacto com o embaixador Tânger Correia, em Doha, e diz-se “muito empenhado” em estabelecer contactos com o seu homólogo omanense, por considerar este assunto “de extrema relevância”.
A diretora-geral da DGPC considera que “a descoberta em causa terá uma grande importância para a História de Portugal, a confirmar-se ser efetivamente um naufrágio de um navio ao serviço do Estado português” e adianta que irá ser reunido “um conjunto de pareceres científicos que permitam analisar criteriosamente os dados ali coligidos”, estando “à disposição do Estado omanense para encetar relações bilaterais sobre a matéria”.
Esta história está longe de conhecer um ponto final. Na verdade, talvez nunca venha a ser contada. Apesar da pormenorizada descrição nas Lendas da Índia, de Gaspar Correia (1495-1561), e de todas as descobertas atuais, muitos segredos desta nau continuarão sepultados naquele mar enganadoramente sereno, que parece ter-se apropriado do seu nome: Esmeralda.
ENTREVISTA
DAVID MEARNS
Diretor da Blue Water Recoveries
“Nenhum objeto da nau ‘Esmeralda’ será vendido”
O britânico, que se apresenta como “caçador de naufrágios”, liderou o projeto de escavação da nau da 2ª Armada da Índia, em Omã. A Esmeralda, contou à VISÃO ao telefone, a partir de Londres, atormentou-o durante quase 20 anos.
Porque só agora foi anunciada a descoberta da Esmeralda quando a sua empresa a encontrou em 1998?
As escavações atuais ocorreram em 2013, 2014 e 2015. Depois de a localizarmos, em maio de 1998, decidimos não realizar a escavação integral. A equipa de então não tinha muita experiência na área da arqueologia e não quis assumir uma missão tão complicada, com medo de cometer erros. Foi difícil esperar, mas era preciso juntar a equipa certa de peritos e obter financiamento para avançar com o projeto.
Portugal e Omã assinaram um acordo em 1982, prevendo a proteção e estudo do património comum. Que tipo de informação foi dada às autoridades portuguesas?
Não posso falar por Omã nem tenho conhecimento de como os dois países partilham informações nos termos desse acordo. Pela minha parte, tudo fiz para informar altos representantes de Portugal, nomeadamente na Direção-Geral do Património Cultural.
Porque não integrou na equipa arqueólogos subaquáticos portugueses, especializados nesta época?
Eu tentei e recebi muitos “nãos”. Mas tivemos um arqueólogo português na equipa, António Camarão, no final de 1998. Mais recentemente, contei com o apoio de especialistas portugueses, em vários campos, para analisar os artefactos recuperados.
O que lhe dá certeza de que ali naufragou a Esmeralda?
Estamos absolutamente seguros de que o local do naufrágio é onde os navios dos irmãos Sodré foram destruídos. A análise científica que suporta essa conclusão está publicada no International Journal of Nautical Archeology. É também minha convicção, embora não possa ser 100% categórico, que os artefactos pertenceram à Esmeralda.
Qual será agora o destino desses artefactos?
Estão todos em Muscat, em processo de catalogação e conservação. Serão submetidos a uma análise arqueológica adicional e esse processo levará anos. Nenhum objeto será vendido, será tudo exposto no museu de Omã. Este projeto foi realizado em conformidade com a Convenção da UNESCO, que proíbe expressamente a venda de artefactos.
Dos objetos encontrados, qual considera ter mais valor?
Em termos de valor histórico e arqueológico, há inúmeros objetos fascinantes: o sino do navio, o disco de bronze com a esfera armilar, o “índio” de prata. Mas existem outros artefactos que podem vir a ser de maior interesse para os arqueólogos, quando a coleção completa for estudada. Acredito que a cerâmica, por exemplo, vai contar uma história interessante sobre a vida a bordo destes navios e as rotas que faziam.
Há outras naus portuguesas no seus planos?
Há muitos naufrágios portugueses que vale a pena encontrar. O património cultural subaquático português é extremamente rico e, pela resposta do público à nossa descoberta, ainda causa um grande fascínio em pessoas de todo o mundo.
(Artigo publicado na VISÃO 1024 de 31 de março de 2016)