Que pergunta faria o primeiro-ministro a si próprio, sabendo de antemão que ela o embaraçaria? Talvez Cristina Ferreira pense que tenha acertado, quando, no dia de Entrudo, em direto, no Programa da Cristina, na SIC, lhe pediu que falasse de amores. “Não quer antes falar do défice?”, disse um António Costa bem-humorado, a fingir-se envergonhado. Revisitemos um outro feriado, o de 10 de junho de 2017. Enquanto António Costa se ocupa em participar no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, entrando em casa dos espectadores através dos canais de notícias, o mesmo António Costa aproveita os dons da ubiquidade, tornados possíveis pela pré-gravação de entrevistas, para aparecer no programa Alta Definição, no canal aberto da estação de Carnaxide (agora, de Paço de Arcos), a confessar-se a Daniel Oliveira. E o entrevistador ensaia a rasteira: “Qual a pergunta que faria a si próprio, sabendo que ela iria embaraçá-lo?” Entre risos, o primeiro-ministro é rápido na resposta: “Não faria…” Pois. É precisamente essa a ideia deste tipo de presenças televisivas de um político: humanizar, sorrir, acenar e, eleitoralmente, fazer “dinheiro em caixa”..
Alta Definição, 5 Para a Meia-Noite, Programa da Cristina, Esmiúça os Sufrágios – de Ricardo Araújo Pereira (RAP) –, Parabéns, de Herman José, foram ou são programas nos quais, pelo menos uma vez, mais contrafeitos ou mais entusiasmados, os políticos já compareceram. Todos, ou quase todos. Pedro Passos Coelho foi o único líder partidário a recusar a ida ao programa de RAP, considerado, pelo seu registo diferente (de assumida sátira política), um espaço de alto risco. Uma praia estranha aos políticos, supostamente hostil e imprevisível. Segundo um ex-assessor que trabalhou com dois primeiros-ministros, há regras a seguir, que passam pelo estudo da prestação de rivais políticos e um ensaio com a equipa de assessores, para tentar antecipar os temas/padrão do humorista ou entrevistador. O resto “é inconsciência pura”. Claro que, entre ir e não ir, acrescenta o mesmo especialista, opta-se pelo mal menor: “Ir… e cruzar os dedos.” A recusa em participar neste tipo de programas pode ser mal interpretada: medo, falta de sentido de humor ou de aceitação da crítica, sobranceria e arrogância ou a perda de uma oportunidade para mostrar um outro lado, suscetível de captar as simpatias do eleitorado. E foi disso mesmo que Passos Coelho foi acusado, quando recusou “passar cartão” a Ricardo Araújo Pereira. Ainda assim, uma vez em estúdio, o político está sem rede e, “entre os assessores, quem é crente, reza…”
José Sócrates, em Esmiúça os Sufrágios, jogou pelo seguro e, embora tenha sido pródigo em sorrisos, nunca arriscou uma frase minimamente espirituosa. O ex-primeiro-ministro terá comentado, em privado: “Pior do que não mostrar sentido de humor é falhar uma piada.”
Como observa Rui Calafate, diretor-geral da Special One Comunicação, “enquanto o lado da indústria televisiva parece fazer parte da pele de Marcelo e de Costa, Cavaco Silva e Rui Rio, por exemplo, não parecem encaixar-se”. Eles que “procuram cultivar a imagem do Deus ex machina” e que pretendem vincar “o lado de elevação acima do comum dos mortais”.
Sobre o risco desses programas, Assunção Cristas (que garante não ter sido o arroz de atum uma escolha sua mas da produção do programa de Cristina Ferreira…) não se assusta: “Gosto muito do risco e estes programas só têm graça se forem espontâneos. Não temo o dia seguinte [nas redes sociais]. Desde que esteja bem, que me sinta bem e que as pessoas que me convidaram gostem, tudo bem. Estaria mal no dia em que, para não ser criticada, deixasse de fazer uma coisa que me dá prazer.”
Pedrógão e o cheiro a queimado
E, de repente, a cataplana suplantou o arroz de atum, como o prato político de excelência. António Costa, um primeiro-ministro de avental, submeteu-se ao teste da cozinha, suplantando, numa espécie de sofisticação culinária, o prato simples cozinhado por Assunção Cristas, no mesmo Programa da Cristina, das manhãs da SIC. E logo as escolhas foram entendidas como subliminares mensagens políticas: como lembra Franscisco da Silva, consultor de comunicação e marketing, “a cataplana mistura tudo e define um bocado a política do António Costa, porque desde sempre se entendeu e coligou com toda a gente. Sempre conseguiu fazer uma cataplana, seja de partidos, seja de personalidades, e depois servi-la aos portugueses.” O arroz de atum representa uma refeição preparada por uma “mãe que trabalha – sem tempo nem paciência –, que chega a casa ao fim do dia e tem de se despachar”. É, acrescenta o mesmo perito, “uma tentativa de criar empatia com a classe trabalhadora, à qual Assunção Cristas tenta chegar. E para tirar o rótulo do CDS das elites, que o partido habitualmente representa”.
Mais do que um prato, a cataplana é, por sua vez, um golpe planeado de marketing político, com muito mais retorno potencial do que dezenas de debates televisivos (que pouca gente vê ou compreende…) com outros líderes políticos. A mensagem básica é a de dizer que esta pessoa é de carne e osso. Enquanto a mulher, Fernanda Tadeu, confidencia que o marido, nos seus tempos de estudante, tinha muitas namoradas, o primeiro-ministro, placidamente, vira-nos as costas, para procurar qualquer coisa no frigorífico colocado, lá atrás, pela produção.
Enquanto Costa responde a perguntas sobre Pedrógão, metidas a martelo entre as dicas culinárias e as vicissitudes de homem de família, “foi uma coisa horrível, um momento marcante”, a câmara dá-nos o grande plano das mãos a mexer no peixe. Podem ter morrido umas dezenas de pessoas nos incêndios de 17 de junho e de 15 de outubro de 2017, mas tudo fica mais suave quando o aroma vindo do fogão é o de ingredientes a aloirar e não o cheiro a queimado. A estrela de TV do momento já conseguiu um telefonema do Presidente da República e a presença de políticos como Marques Mendes, Marisa Matias, Assunção Cristas e António Costa. Àquela hora, a maioria dos espectadores é constituída por reformados. E todos os convidados sabem que os pensionistas são uma falange eleitoral poderosa. Se Costa e Cristas foram escolhas da própria Cristina Ferreira, agora há muitas personalidades que vão sondando a apresentadora para aparecerem. Para os próximos tempos, segundo apurou a VISÃO, até já há contactos com BE e o PCP para que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa marquem presença. E Pedro Santana Lopes também estaria na calha para mais uns minutos de fama, mas disse à VISÃO que não está interessado em ir ao programa, embora nada tenha contra ele “nem contra a excelente apresentadora”. André Silva, deputado do PAN, que já esteve no programa a debater touradas, disponibilizou-se para voltar, para preparar um prato vegan. O único líder de partidos com assento parlamentar em relação ao qual não haverá ainda qualquer abordagem é Rui Rio. “Parece que Cristina Ferreira é a nova ‘dona disto tudo’ e todos os políticos têm de levar a bênção da pessoa mais popular da TV em Portugal”, advoga Rui Calafate.
Já o politólogo José Adelino Maltez explica tudo pelo populismo, “para não lhe chamar outra coisa…”. E aponta o dedo ao Presidente da República: “Tudo isto é resultado do ‘produto da personalização do poder’, personificada especialmente por Marcelo. Poderá chegar-se ao ponto em que aqueles que recusem participar nesses espetáculos estejam condenados a ser uns tipos anormais. Alguém duvida de que o gosto dominante considera Cavaco Silva um anormal?”, interroga-se.
A escolha do carnaval
António Costa, cuidadosamente, escolheu a manhã da terça-feira de Carnaval, não por estar de folga, como lhe foi perguntado, mas por “ser dia de tolerância de ponto”, como sublinhou. Ou talvez porque, estando a população em casa, o programa pudesse ser visto, como foi, não apenas por reformados e desempregados, mas por famílias inteiras, ainda ensonadas e de pijama. Um público-alvo amplo, diversificado e massivo, como comprova a leitura do nível de audiências dessa manhã: uns estratosféricos 745 mil espectadores, recorde absoluto em programas matinais.
Herman José, que foi sempre um ponto de passagem obrigatório no roteiro televisivo dos políticos – foi num dos seus programas que Paulo Portas revelou o célebre episódio da vichyssoise de Marcelo… –, defende que, “hoje em dia, o público está de tal maneira pulverizado entre canais cabo e redes sociais, que nada é suficientemente intenso. Mesmo assim, para um bom profissional da política, nenhuma oportunidade de boa promoção é despicienda.”
Uma fonte do gabinete do primeiro-ministro desvaloriza qualquer pulsão eleitoralista ou populista. Diz que António Costa se limitou a responder a um convite formulado há bastante tempo, que foi a mulher, Fernanda Tadeu, a escolher o prato e que não sabia que a família também ia. Para quem estiver interessado, a mesma fonte assegura que o PM vai mesmo à lavandaria, que vai semanalmente ao mercado de Alvalade, que anda mesmo de transportes públicos… A líder do CDS, Assunção Cristas, que também terá beneficiado da popularidade do programa, já está habituada: à VISÃO recorda que já tinha estado nas Manhãs da TVI, no Você na TV, com Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira; e, também na SIC, com Júlia Pinheiro, ou com Daniel Oliveira, no Alta Definição. Um pleno.
Do saxofone de Clinton à bateria de Rio
A “humanização” dos políticos que, pelos vistos, não se mede pela sua capacidade de melhorar a vida das pessoas mas pela disponibilidade em mostrar a família, é uma importação dos países anglo-saxónicos, onde a avaliação da vida privada sempre contou como referência para a motivação eleitoral. E o fenómeno é transversal a todas as áreas ideológicas, embora, por vezes, o feitiço se vire contra o feiticeiro. Exemplos? A exposição da bela casa de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças grego, do Syriza que, na revista Paris Match, abriu a cortina a uma opulência insuspeitada, em plena crise grega, ou a vida cor-de-rosa nos primeiros anos de política de Santana Lopes, que culminou com uma foto de lenço à pirata na cabeça, durante um cruzeiro da discoteca Kapital.
Esta tradição anglo-saxónica onde a conduta na vida privada – e os divórcios… – contam foi, nos EUA, amplamente potenciada pelo poder da televisão. Um dos primeiros a fazer habilidades em palco (televisivo) foi, nos anos 90, o Presidente Bill Clinton, que tocou saxofone no Arsenio Hall Show. Mais recentemente, Barack Obama sempre atirou a família para a frente, tendo a sua mulher, Michelle, ganho um tal protagonismo que chegou a ser dada como a próxima candidata presidencial do Partido Democrata, não pela atividade política própria, como Hillary Clinton, mas pela exposição mediática de oito anos na Casa Branca. Obama foi três vezes ao programa de Jon Stewart, The Daily Show, a primeira em 2007, ainda como senador do lllinois, as outras duas em 2012 e 2015, já como Presidente dos EUA. Jô Soares, no Brasil, é outro anfitrião crónico dos políticos de serviço.
E o risco da triste figura, logo criticada nas redes sociais? Francisco da Silva diz que compensa bastante, “porque o que vemos como ridicularização cria notoriedade e empatia com as pessoas, sobretudo com as menos favorecidas, que também se sentem ridicularizadas pelo sistema. Em princípio, se as redes sociais são contra, o País real é a favor”.
Herman José defende que o público se divide em três grandes grupos: “Aqueles para quem qualquer presença é indiferente, os críticos que acharão sempre qualquer participação ridícula, e o terceiro que, de tão infantil, se deixa encantar por práticas do género, mesmo que rocem a caricatura. Não raras vezes, é precisamente esse que decide as eleições.”
Mas se Clinton arriscou o ridículo ao fazer de animador musical, por cá, o insuspeito Rui Rio, tido como um político que não dá abébias à comunicação social, não hesitou em fazer um solo de bateria no 5 Para a Meia-Noite. Programa em que António Costa também já compareceu, sem que nunca tenha feito a si próprio a tal pergunta embaraçosa. Como a que Cristina Ferreira poderia ter-lhe colocado, no momento da cataplana, antes de lhe passar um pequeno recipiente de vidro: “Senhor primeiro-ministro, porque é que se esqueceu de pôr sal?”