Há dez anos que a atleta sul-africana, 28 anos, campeã olímpica e mundial dos 800 metros, está debaixo de fogo – com a sua feminilidade posta em causa e a ser, inclusive, sujeita a testes de género. Agora, Caster Semenya perdeu o recurso contra o Tribunal Arbitral do Desporto, que decidiu proibi-la de correr as distâncias menores – a menos que ela se renda à medicação.
“Estamos conscientes de que as regras são discriminatórias, mas no caso é aceitável”, alegou Matthieu Reeb, secretário-geral do Tribunal de Arbitragem do Desporto, sobre um caso que levou já a demissões na Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF): “Está-se a transformar uma pessoa saudável num paciente”, considerara já o especialista em Direito Steve Cornelius, depois de anunciar que se saía daquele órgão em protesto contra este caso.
A atleta olímpica tinha decidido processar o regulamento aprovado pela IAAF, depois de, no ano passado, a entidade ter anunciado que tinha baixado os níveis de testosterona permitidos em corredoras de provas acima dos 400 metros – e até aos 1600. Na prática, a decisão excluía Caster das competições em que ela mais se destaca.
A questão da interssexualidade
Nascida numa pequena vila, no interior da África do Sul, Caster Semenya começou a correr como treino para jogar futebol – mas tudo mudou quando, aos 17 anos, venceu os 800 metros nos Jogos da Juventude da Commonwealth, na Índia. No ano seguinte, apresentou-se no Campeonato Africano de Atletismo Júnior, e venceu não só os 800 como os 1500 metros, estabelecendo novos recordes nacionais. Nesse mesmo ano de 2009, foi ao Campeonato Mundial de Atletismo, que decorreu em Berlim, e voltou a levar a medalha de ouro para casa, além da melhor marca do ano, novamente.
Foi então que esta polémica da feminilidade a menos e testosterona a mais começou. A rápida ascensão e a conquista sucessiva de melhores tempos levaram logo a IAAF a exigir que se submetesse a testes de género – além de anunciar que era obrigada a abrir uma investigação ao caso, dado que aquele tipo de avanços extraordinários costuma estar associado ao uso de drogas. Os resultados desses testes nunca foram anunciados oficialmente, mas acabou por se saber que sugeriam que Caster tem traços de intersexualidade. Ou seja, uma variação de carateres sexuais que dificultam a identificação de um indivíduo como totalmente feminino ou masculino.
Seguiu-se uma série de acusações de racismo da organização contra a atleta – o ex-atleta americano Michael Johnson foi um dos que criticou publicamente a IAAF pela forma como estava a conduzir o caso. E nem fez caso das palavras de Lamine Diack – o empresário senegalês que já foi presidente daquela organização, tendo depois sido obrigado a sair, por estar envolvido numa série de processos de corrupção) – e que veio a público declarar que os testes a que Caster se sujeitara pretendiam apenas confirmar se ela possuía uma condição médica rara que lhe poderia dar uma vantagem injusta na disputa com outras mulheres.
Deficiência cromo…quê?
Pouco depois, o técnico de Semenya, Wilfred Daniels, renunciava ao cargo, alegando que a Athletics South Africa (ASA), a federação local de atletismo, não a tinha defendido como devia. Diversos políticos e ativistas sul-africanos caracterizaram de imediato a controvérsia como um caso de racismo, assim como uma afronta aos direitos humanos e à privacidade de Semenya.
Por recomendação do ministro do desporto do seu país, a atleta contratou uma firma de advogados, que trabalhou pro bono, para garantir que os seus direitos civis e legais fossem assegurados durante as investigações. Numa entrevista a um órgão de comunicação local, ela declarou: “Sou como sou e tenho muito orgulho em mim.”
Os exames acabariam a revelar que Caster é portadora de uma deficiência cromossomática que lhe confere características masculinas e femininas. Ou seja, embora os genitais externos sejam femininos, Semenya não tem ovários nem útero, e possui testículos ocultos internamente que produzem testosterona acima do normal para uma mulher.
E as provas, senhores?
Nada que a impedisse de ser escolhida como porta-bandeira da delegação sul-africana no desfile das nações, na cerimónia de abertura dos Jogos de Londres, em 2012. Eram os seus primeiros olímpicos, mas nos 800 metros ficou-se pela medalha de prata – o que levou alguns comentadores a questionar se teria ficado para trás propositadamente, de forma a não alimentar a polémica. Mais tarde, ficaria com o ouro, depois da atleta vencedora ser desqualificada por doping.
Em julho de 2015, a IAAF mudava as regras em relação a estes altos níveis naturais de testosterona em mulheres, depois de outro caso com uma velocista indiana. A sentença, ditada pelo mesmo Tribunal Arbitral do Desporto, estabelecia então que havia falta de evidências de que esses altos níveis aumentassem a performance das atletas, e deu dois anos à IAAF para apresentar provas.
Em abril de 2016, Semenya tornava-se a primeira atleta a vencer os 400, os 800 e os 1500 metros no Campeonato Sul-africano de Atletismo. No Rio, em 2016, venceu os 800m com a melhor marca da sua vida – 1:55.28 – arrecadando a a primeira medalha de ouro olímpica feminina da África do Sul no atletismo de pista (antes de herdar o ouro olímpico de Londres 2012).
Foi quando as críticas de algumas colegas se tornaram públicas, como por exemplo a britânica Lindsay Sharp, sexta colocada, que se mostrou inconsolável, depois de declarar que era “quase impossível vencer Caster, dado os seus altos níveis hormonais”.
Da biologia e da ética
O debate passou depois para o lado dos médicos. Eric Vilain, geneticista e diretor de um centro de biologia baseado no género, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), veio a público dizer que “se qualquer pessoa se declara do sexo feminino pode competir com mulher, então estamos a caminho de uma competição que em breve não terá mulheres verdadeiras a vencer”.
A reação, claro, não se fez esperar, pela voz da médica e especialista em bioética americana Katrina Karkazis, a declarar, citada pelo The Guardian, que “as declarações das perdedoras era uma clara evidência de discriminação e ignorância”.
Em 2017, Caster voltou a ir ao Campeonato Mundial de Atletismo, em Londres, e dessa vez optou por acrescentar uma distância que não é a sua especialidade – os 1500 metros. Mesmo assim, conquistou a medalha de bronze. Já nos 800 metros, voltou a conquistar a medalha de ouro e, novamente, o melhor tempo do ano.
Agora, Caster pode ter perdido o recurso contra a IAAF – no Twitter, escreveu apenas “às vezes, é melhor reagir sem nenhuma reação” – mas a discussão está longe de terminar. Em sua defesa, saiu já também Kyle Knight, do programa de direitos LGBTI da ONG Human Rights Watch, a considerar que tomar os inibidores de testosterona recomendados pela Federação Internacional de Atletismo seria tão humilhante quanto clinicamente desnecessário.
Outros ativistas da defesa dos direitos humanos vieram ainda lembrar como, atualmente, se aceita que o espectro da identidade de género vai muito além do binário “homem e mulher” – deixando no ar outra questão: será que as habilidades físicas de Semenya não deveriam ser celebradas da mesma forma que foram as dos então também campeões Usain Bolt ou Michael Phelps?