A história é conhecida mas todas as ocasiões são boas para a recordar. Na primavera de 1961, um advogado inglês, Peter Benenson, ficou indignado ao saber que dois estudantes portugueses tinham sido presos, em Lisboa, pelo simples facto de brindarem à liberdade. Dias depois, no The Observer, escreveu um artigo intitulado Os Prisioneiros Esquecidos e anunciou o nascimento de uma organização para os defender: “Abra o seu jornal num qualquer dia da semana e encontrará um relato de alguém que foi preso, torturado ou executado, num qualquer sítio do mundo, por as suas opiniões ou a sua religião serem inaceitáveis para o governo do seu país.
[.] O leitor fica com um revoltante sentimento de impotência. E, no entanto, se estes sentimentos de revolta por todo o mundo puderem unir-se numa ação comum, algo eficaz pode ser feito.” A realidade demonstrou que tinha toda a razão. A Amnistia Internacional converteu-se num organismo incontornável, ao defender milhares de prisioneiros políticos nos cinco cantos do planeta, recebeu o Prémio Nobel da Paz, em 1977, e conta hoje com sete milhões de filiados e simpatizantes em 150 países.
Só que o mundo mudou e com ele a forma como as questões dos direitos humanos são encaradas. Nos novos tempos defactos alternativos, de democracias iliberais e de líderes populistas com tiques autoritários, a defesa das liberdades fundamentais converteu-se num tema-chave. E isto a tal ponto que a revista Foreign Policy, na sua edição de abril, decidiu abordar o tema e dedicar-lhe a capa: uma pomba branca com o corpo trespassado de setas, morta, numa montagem gráfica inspirada no quadro do mártir São Sebastião, assinado por Giovanni Antonio Bazzi, em 1525. O título não podia ser mais provocador: “O fim dos direitos humanos?” No interior, as respostas são algo ambivalentes, mas o tom final é de esperança.
Kenneth Roth, o mediático diretor-executivo da Human Rights Watch, mostra-se otimista: “Os líderes populistas, por norma, oferecem respostas superficiais a problemas complexos.
Mais do que resistir, é necessária uma resistência baseada em princípios.” Para o ucraniano Oleg Sentsov, este tipo depalavras já lhe serve de muito pouco.
TESTAMENTO DO PRISIONEIRO DA SIBÉRIA
Em greve de fome desde 14 de maio, este cineasta nascido há 42 anos em Simferopol, na Crimeia, diz estar pronto para levar a sua luta até às últimas consequências. Condenado, em agosto de 2015, a duas décadas de prisão por alegados crimes de terrorismo incluindo a tentativa de dinamitar uma estátua de Lenine, Sentsov sempre manifestou a sua inocência, e o processo judicial de que foi protagonista teve pormenores equivalentes aos julgamentos sumários da era estalinista.
Opositor à anexação da Crimeia pela Rússia, participou em inúmeras manifestações contra o Kremlin e ele próprio admite que integrou um grupo de ativistas que levava comida e bebida aos soldados ucranianos sitiados pelas tropas deMoscovo. No entanto, rejeita ter participado em quaisquer iniciativas violentas. A justiça russa deu como provado que não era assim, apesar de a principal testemunha de acusação ter dado o dito por não dito e confessado que sofreu pressões para incriminar o realizador.
Quanto aos sinais de tortura e aos ferimentos exibidos por Sentsov há mais de três anos, a explicação oficial é que foi tudo autoinfligido e que o então réu era um conhecido adepto de práticas sadomasoquistas.
Agora, detido numa colónia penal da Sibéria, em Labytnangi, já no Círculo Polar Ártico, conta apenas com a solidariedade internacional.
Milhares de pessoas têm promovido inúmeros abaixo-assinados, e diversas organizações de defesa dos direitos humanos têm exigido a sua libertação, mas já ficou demonstrado que isso não chega. A Pen America, por exemplo, conseguiu reunir uma impressionante lista de escritores e artistas a intercederem por Sentsov, só que as autoridades russas permanecem indiferentes aos apelos subscritos por figuras como Wim Wenders, Pedro Almodóvar, J.M.
Coetzee, Jonathan Franzen, Paul Auster, Lev Grossman, Salman Rushdie e Patti Smith.
Antes e durante do Mundial de futebol, existiu a esperança de que algo poderia ser feito e, em França, várias figuras da política e da cultura tentaram convencer o Presidente Emmanuel Macron a não se deslocar ao país de Vladimir Putin, ou então a abordar o caso Sentsov com o seu homólogo russo. O resultado está bem à vista. Mesmo assim, na pátria dos direitos humanos, não se desiste. É raro o dia em que o Le Monde, o Le Figaro e afins não tragam notícias e textos ensaísticos sobre o homem que iniciou uma greve de fome que só vai terminar diz ele quando morrer ou quando a Rússia abrir as portas das celas a todos os prisioneiros políticos ucranianos (mais de seis dezenas).
Oleg Sentsov, casado e com duas filhas, sabe que a sua reivindicação não tem grandes hipóteses e, no início deste mês, escreveu o seu testamento, entretanto disponibilizado no site do Pen America: “Os heróis só morrem bem nos filmes e nos livros. Na vida real, mijam sangue nas calças, berram de dor e lembram-se das suas mães. Eu não quero ser enterrado. Quero ser cremado. Não na fogueira de qualquer inquisição, mas num simples forno crematório.
Queimado, as cinzas devem ser lançadas ao mar. Se possível, no mar Negro, e no verão, quando o sol brilha e o vento fresco sopra (…) E não há mais nada. Mesmo nada. Só memória.
Das coisas que eu fiz. E dos meus amigos. E de vocês. E então ficarei para sempre convosco.” A qualquer momento pode chegar a notícia de que é preciso cumprir a sua última vontade.
E o mais provável é que Oleg Sentsov acabe por ficar na longa lista dos que ousaram desafiar o Kremlin, perante a apatia dos milhões que ainda desconhecem o seu nome ou os de Natalia Estemirova, Paul Khlebnikov e de Anna Politkovskaya. Sobre esta última, convém acrescentar que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou, a 17 de julho, a Rússia por não ter investigado devidamente o homicídio da jornalista e assim não se saber até hoje quem ordenou o crime.
Não se julgue, porém, que a Rússia é um caso isolado no que toca a impunidades e a violações de liberdades, direitos e garantias. Tal como vaticinou o académico e historiador canadiano Michael Ignatieff, no início deste século, “não há razão alguma para acreditarmos que a globalização económica seja acompanhada por uma globalização moral”.
A MÁRTIR DA DITADURA PERFEITA
A 10 de julho, um voo da Finnair (companhia aérea finlandesa) aterrou em Berlim com uma passageira especial: Liu Xia, 57 anos, a viúva do Prémio Nobel da Paz de 2010 (o escritor, filósofo e ativista Liu Xiaobo). Antes de viajar para a capital da Alemanha, a poetisa esteve em prisão domiciliária nos anteriores oito anos sem nunca ser formalmente acusada de qualquer crime, e a sua libertação ocorreu num momento de particular apaziguamento entre o Governo dePequim e as chancelarias europeias entenda-se, devido às guerras comerciais decretadas por Donald Trump.
Por outro lado, convém sublinhar que, em maio, outro ilustre dissidente chinês, Liao Yiwu, residente em Berlim desde2011, revelou que a sua amiga Liu Xia estava profundamente deprimida e com vontade de se suicidar devido ao regime de reclusão que lhe fora imposto.
Não era segredo para ninguém que ela estava abalada desde a morte do marido, a 13 de julho de 2017, na sequência deum cancro só diagnosticado na fase terminal e que lhe rendeu a triste glória de ser o segundo galardoado com o Nobel a falecer sob custódia policial o outro foi o pacifista alemão Carl Von Ossietzky, em 1938.
O mais caricato é que a libertação desta dissidente coincidiu com a condenação a 13 anos de prisão de Qin Yongmin, um dos mais conhecidos ativistas chineses. Além de ter já penado durante duas décadas nas masmorras da República Popular, o sexagenário terá passado os últimos 15 meses a aguardar julgamento por crimes de que não foi sequer informado. O seu paradeiro permanece desconhecido e a sinóloga Frances Eve, citada pela revista Time, não tem dúvidas: “A enormidade de abusos neste caso, que vai do sequestro aos castigos infligidos à sua mulher (…), é a prova de que o império da lei não existe na China.” Uma declaração que poderia ser igualmente subscrita por académicos e juristas como Hu Shigen, Guo Hongguo e Zhou Shifeng, todos eles conhecedores da máquina repressora chinesa, cada vez mais sofisticada e implacável. Segundo as informações publicadas pelo Financial Times a 20 de julho, o regime controlado pelo Partido Comunista investe como ninguém em Inteligência Artificial e tecnologia orwelliana para melhor controlar os seus 1 400 milhões de cidadãos que, só em Pequim, estão à mercê de 850 mil informadores e de milhões decâmaras, capazes de fazer, reconhecimento facial. Um cenário digno do filme Minority Report. Para já, como lhe chamou o politólogo norueguês Stein Ringen, professor em Oxford, trata-se da “ditadura perfeita”.
A INTERNET E O ADVOGADO DOS ESCRAVOS
Talvez por causa da sua suposta perfeição, o exemplo repressivo chinês tem cada vez mais seguidores. É o caso deÁfrica, onde os críticos do poder têm a vida complicada como nunca, devido aos avanços tecnológicos e às redes sociais.
Em Angola, o jornalista Rafael Marques já teve de lidar com o assunto, mas o Governo de Luanda nem é dos piores. Em março, a Tanzânia impôs legalmente novas restrições a quem queira aceder à internet. O Egito fez o mesmo e passou a controlar de forma apertada os bloggers com mais de cinco mil seguidores.
A Zâmbia impôs registos de navegação aos internautas. O Zimbabué, também inspirado na Coreia do Norte, criou o Ministério da Cibersegurança.
Já em julho, o Uganda começou a aplicar taxas diárias aos utilizadores de Facebook, Twitter e afins, enquanto os Camarões continuam a ser um recordista absoluto na capacidade para desligar os seus cidadãos da internet: 93 dias consecutivos de bloqueio total, entre janeiro de 2016 e dezembro de 2017, segundo a ONG Access Now.
Moussa Bilal Biram, um advogado da Mauritânia, poderia ser considerado um infoexcluído, mas isso não o impede deser um combatente pela liberdade à moda antiga. Libertado há menos de um mês graças ao bons ofícios da Amnistia Internacional, passou quase dois anos encarcerado numa masmorra algures no deserto do Sara. O seu crime foi deveras simples: protestar contra o flagelo da escravatura no seu país. O Governo de Nouakchott alega que o ativista perturba a paz social e que já incitou por diversas vezes à violência, algo que o visado nega, mas a questão de fundo permanece, como confirmou recentemente a Free Walk Foundation, ONG australiana que se dedica a denunciar a escravatura contemporânea: na Mauritânia ainda existem mais de 90 mil pessoas sujeitas a tratamento desumano e a precisarem dequem as defenda como Moussa Bilal Biram.
Ser crítico e dizer o que se pensa não costuma ser fácil em sítios onde apenas impera a lógica de quem manda. É o caso da Turquia do Presidente Recep Tayyip Erdogan. Na sequência da intentona golpista de há dois anos, o Chefe de Estado acelerou a deriva autoritária, com as purgas entretanto realizadas a atingirem mais de 150 mil funcionários públicos, e o número de detenções e condenações arbitrárias a passarem as 77 mil. Um balanço que, segundo as organizações dedireitos humanos, só peca por escasso. O estado de exceção foi levantado na última semana, mas a normalidade é algo que tarda em regressar que o diga Selahattin Demirtas. Sobre este deputado e carismático líder do Partido da Democracia dos Povos (HDP, pró-curdo), preso há 21 meses, pesam mais de uma centena de processos judiciais que podem impedi-lo de ver a luz do dia até meados do século XXII. Enquanto aguarda julgamento, mostra-se tranquilo quanto ao seu futuro. Aliás, ele está a gerir muito bem o seu cativeiro e, como escreveu em maio o Le Monde, quem fica a perder com esta situação é o Presidente Erdogan e a justiça turca, que ameaçam convertê-lo num “mártir da liberdadede expressão e num Mandela curdo”.
VÍTIMAS ILUSTRES DA INTOLERÂNCIA
Situação mais delicada é a que vive o indonésio Basuki Purnama, mais conhecido por Ahok.
Neto de um mineiro chinês, o antigo deputado e governador de Jacarta (cargo que ocupou entre 2014 e 2017) cumpre uma caricata pena de dois anos de prisão por blasfémia. Uma sentença imediatamente classificada como “injusta e absurda”, de acordo com a Human Rights Watch. Cristão protestante, Ahok tem sido alvo de uma implacável campanha dos grupos fundamentalistas islâmicos da Indonésia.
Seja como for, a verdade é que conseguiram afastá-lo da vida pública, ao que parece através de expedientes sofisticados e com a intervenção direta do autodesignado Ciber Exército Muçulmano, grupo com alegadas ligações a generais interessados em manter a sua influência e em agudizar as tensões religiosas no país.
Cenário vagamente idêntico está a ocorrer nas Flipinas, onde o Presidente Rodrigo Duterte tenta eliminar as vozes discordantes, ao mesmo tempo que lidera uma guerra ao tráfico de droga que já fez mais de 12 mil mortos e inclui linchamentos e execuções sumárias. Uma das vítimas colaterais do conflito chama-se Leila de Lima. Esta antiga senadora e ativista dos direitos humanos, de 59 anos, está detida há 17 meses e continua a aguardar julgamento.
A sua sorte é ter bons amigos e defensores.
Graças aos apoios internacionais, continua a criticar Duterte e a gozar de um regime especial na prisão que lhe permite ser visitada diariamente pela família, que lhe leva de comer e beber, para evitar riscos desnecessários. É considerada unanimemente uma prisioneira de consciência, e o Presidente filipino não perde uma oportunidade para a insultar. Ela agradece porque tudo isso contribuiu para a Amnistia Internacional a ter considerado, em maio, a “Mais ilustre Defensora dos Direitos Humanos” da atualidade. Um título que também poderia ser atribuído a Razan Zaitouneh, uma das 75 mil pessoas desaparecidas no conflito da Síria. Desde dezembro de 2013 que ninguém sabe desta advogada já convertida num ícone da democracia no Médio Oriente…
GREVISTAS DA FOME: Exemplos de personalidades mediáticas
Anatoli Marchenko- UNIÃO SOVIÉTICA – O escritor e dissidente faleceu aos 48 anos, em 1986, após mais de duas décadas a criticar o comunismo e a URSS
Bobby Sands – IRLANDA DO NORTE – Após 66 dias sem comer, morreu em 1981, aos 27 anos. Tornou-se um símbolo do nacionalismo irlandês
Guillermo Fariñas – CUBA – Este jornalista já fez mais de uma dúzia de greves para denunciar o regime de Havana. Em 2010 recebeu o Prémio Sakharov
Luaty Beirão – ANGOLA – O rapper e ativista anticorrupção, agora com 37 anos, fez greve da fome durante 36 dias, em 2016