Há quem use batons, lingerie ou hamburgers para conhecer as tendências dos mercados e dos consumidores. O futebol podia igualmente servir para se apurar a qualidade das democracias. No caso do Egito, há mais de um século que reflete os devaneios políticos nacionais e a forma como se relacionam os governantes e os governados. Os primeiros derby’s a que o Cairo assistiu foram obviamente disputados pelos britânicos – então acostumados a mordomias faraónicas. Nessa altura, os poucos egípcios que tinham conhecimento desse estranho jogo do pontapé na bola de cautchú eram os funcionários dos seletos clubes que serviam chá e scones aos súbitos da Rainha Vitória. Mas as coisas haveriam de mudar quando, a 24 de abril de 1907, um grupo de estudantes se lembrou de criar uma equipa que tem hoje mais de 30 milhões de sócios – e um treinador incontornável na conquista dos seus troféus mais recentes, o português Manuel José.
Por serem um povo com cinco mil anos de história, os egípcios desenvolveram um apurado sentido de humor sobre o seu passado. É por isso que adoram explicar que o futebol é o único legado cultural que os ingleses lhes deixaram, como moeda de troca por tudo o que foi parar ao British Museum. Sucede que o atual presidente do país, Abdel Fattah Al-Sissi, não é homem que goste de piadas e do desporto rei. Bem pelo contrário. No final de 2015, um aluno de direito chamado Amr Nohan lembrou-se de fazer uma brincadeira, no Facebook, à custa do chefe de Estado: uma fotomontagem do dito cujo com orelhas à rato Mickey. Acusado de “subversão e tentativa para derrubar o regime”, Nohan está ainda a cumprir três anos de prisão efetiva pela graçola.
Quanto ao desporto rei, o marechal Sissi gosta de imitar os seus antecessores. Desde 2012, ano em que se tornaria ministro da Defesa, que as bancadas dos estádios estão desertas por vontade expressa do Governo. Clarifiquemos: ninguém pode assistir a um jogo ao vivo – só mesmo pela televisão. Primeiro porque era preciso tomar medidas drásticas contra os adeptos violentos que provocavam desacatos e massacres – como o que aconteceu em Port Said, entre as claques do Al Ahly e do Al Masri – e depois para evitar a todo o custo que o futebol se convertesse numa arma contra o regime. Tal como sucedeu contra Hosni Mubarak, durante a chamada Primavera Árabe.
Escusado será dizer que as últimas partidas de futebol também não serviram para fazer comícios ou manifestações de apoio a qualquer candidato às eleições presidenciais realizadas entre 26 e 28 de março. Al Sissi e o seu Executivo pretendem manter a censura e o silêncio nos relvados, a exemplo do que sucedeu em 1948 (independência de Israel), 1952 (fim da monarquia) e 1967 (guerra dos Seis Dias, com o estado hebraico). A deriva autoritária no Egito parece não ter limites e essa é uma das razões que levou o Presidente a anular – e a prender – os que tentaram fazer-lhe frente nas urnas. A sua vontade está bem visível nos boletins de voto, com os 60 milhões de eleitores a terem de escolher entre o comandante supremo e Moussa Mustafa Moussa, o advogado que lidera um pequeno partido chamado Ghad e que nunca escondeu a sua simpatia por Al-Sissi. Tanta ou tão pouca que tinha em destaque, até há poucas semanas, um retrato do marechal-presidente na sua página pessoal do Facebook, além de ter admitido já em campanha que poderia votar no seu suposto adversário. Episódios bem conhecidos dos egípcios, incluindo dos mais desfavorecidos que constituem a maioria da população e que dependem de cartões de racionamento alimentar, fornecidos pelo Governo por terem rendimentos inferiores a 2500 libras egípcias – qualquer coisa como 115 euros.
Quanto ao resultado das eleições traduzem uma estrondosa vitória do homem que mandou alargar o Canal do Suez e pretende construir uma nova capital, a meia centena de quilómetros da atual, sem que se saiba muito bem como vai ser financiada. Importante é que haja “paz e segurança” como deseja o “rais”, o chefe. Haver 60 mil prisioneiros políticos – números da Human Rights Watch – ou artistas a serem presos e condenados por tiradas politicamente incorretas são apenas minudências. O mesmo se poderia dizer da crescente influência dos “passarinhos” – os delatores – que policiam os costumes e têm fechado inúmeras casas onde se realizavam espetáculos de dança do ventre. Os argumentos oficiais, resultantes também do estreitar de relações entre o Egito e a Arábia Saudita, são quase sempre os mesmos: libertinagem e imoralidade. A “paródia eleitoral” desta semana, como lhe chamou o Le Monde, está tratada. Vamos ver até quando é que Al Sissi poderá entoar o seu lema de campanha “Viva o Egito!”