Esta situação “parece ser um exemplo clássico de limpeza étnica”. Foi com palavras inteiras, sem a habitual brandura opaca da diplomacia, que o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, se referiu ao mais recente ataque das autoridades de Myanmar (antiga Birmânia) à população rohingya. Uma perseguição recorrente e sistemática desde o início dos anos 60, quando o golpe militar instaurou a ditadura, e que aparentemente se mantém no regime democrático – o que tem valido aos rohingyas o epíteto de minoria étnica mais indesejada do mundo.
A investida mais recente, na verdade, começou em outubro de 2016, após o ataque de um grupo rebelde a entrepostos fronteiriços que deixou nove polícias birmaneses mortos. Mas intensificou-se nas últimas três semanas: após os insurgentes terem lançado nova ofensiva contra postos policiais, o exército retaliou em força. Organizações não governamentais e testemunhas ouvidas por jornalistas têm relatado violações em massa, detenções e assassinatos indiscriminados de civis, incluindo crianças, e a destruição metódica pelo fogo de aldeias inteiras. A Amnistia Internacional já veio apelidar as ações das autoridades birmanesas de “crimes contra a Humanidade”.
O resultado era previsível: só desde 25 de agosto, mais de 370 mil pessoas fugiram para o Bangladesh, que faz fronteira com o Estado de Rakhine, onde vive a larga maioria deste povo, criando uma crise humanitária que só encontra equivalente contemporâneo nos refugiados sírios (levando, tal como no Mediterrâneo, à proliferação de redes organizadas de contrabandistas de pessoas na Baía de Bengala).
Grande parte da explicação para a animosidade é religiosa. Myanmar é maioritariamente budista (perto de 90% da população), e os rohingyas, por serem predominantemente muçulmanos, sempre foram vistos como cidadãos de segunda. Ou menos do que isso, uma vez que lhe está vedada, desde 1982, a possibilidade de adquirirem a nacionalidade birmanesa (as autoridades consideram-nos imigrantes ilegais), de viajarem sem autorização oficial, de estudarem para lá do ensino básico e de ocuparem postos políticos ou administrativos. Em suma, vive-se em Myanmar uma espécie de apartheid.
Mas o calvário dos rohingyas tem raízes mais antigas, de uma era em que o Budismo e o Islão ainda conviviam de forma pacífica – há centenas de anos, eram capturados por piratas e corsários portugueses na costa de Bengala (região hoje dividida entre a Índia e o Bangladesh) e vendidos como escravos ao Reino de Arracão, correspondente ao atual Rakhine birmanês.
Nem Buda lhes vale
Os rohingyas são descendentes dos povos de Bengala que aderiram ao islamismo no século IX. No século XV, alguns grupos começaram a fixar-se no território que atualmente pertence a Myanmar. Mas a migração maior seria involuntária, quando esclavagistas da região – incluindo muitos portugueses, que detinham uma importante feitoria naquela que é hoje a segunda maior cidade do Bangladesh, Chitagongue – passaram a levá-los das suas terras originais para Arracão, no século XVII.
A comunidade muçulmana continuou a crescer na região, ao ponto de, já em meados do século XX, na sequência dos processos de descolonização britânica, surgirem pretensões separatistas, com o objetivo de ser criado um estado islâmico. Coisa que a maioria budista da então Birmânia nunca esqueceria. Em 1962, a junta militar tomou conta do país e retirou aos rohingyas uma série de direitos (culminando com a lei que impedia os rohingyas de pedirem a nacionalidade birmanesa), alimentando ainda mais a insurreição.
A discriminação foi popular entre os birmaneses budistas. Sobretudo no particularmente pobre Estado de Rakhine, onde os locais viam os rohingyas como invasores e usurpadores, temendo a islamização da sua terra. A pressão do povo e o nacionalismo autoritário dos militares que governavam Myanmar fez o resto. Sucessivas investidas do exército contra os muçulmanos sem pátria, justificadas pelas ações dos rebeldes (considerados terroristas pelas autoridades), obrigaram centenas de milhares de pessoas a fugir, a maioria para o Bangladesh, que as instalou em campos de refugiados.
Mas o país, com uma densidade de 1 100 pessoas por quilómetro quadrado (dez vezes superior à de Portugal), já não aguenta mais gente. Os 370 mil que chegaram nas últimas semanas transformaram uma situação difícil num caos absoluto, levando o governo do Bangladesh a fazer sucessivos apelos a Myanmar para receber os rohingyas de volta. Em resposta, Myanmar insiste que os rohingyas são imigrantes vindos do Bangladesh.
A comunidade internacional, por seu lado, tem criticado a forma como Myanmar está a lidar com o caso. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reúne-se esta semana para discutir a crise humanitária, ainda que seja já certo que a China bloqueará qualquer tentativa de pressão sobre o governo local.
Por outro lado, o silêncio quase total da líder do país, Aung Suu Kyi – considerada uma heroína pela sua resistência de décadas à ditadura militar, o que lhe valeu um Nobel da Paz em 1991 –, tem chocado a comunidade internacional. A única vez que falou sobre o assunto limitou-se a acusar a torrente de “informação falsa” de estar a ajudar “os interesses dos terroristas”.
Outros galardoados com o Nobel da Paz já vieram a público pedir-lhe que tentasse parar a violência. O Dalai Lama, por exemplo, apelou ao budismo de Aung Suu Kyi, garantindo que Buda ajudaria os rohingyas. Mas, entre a extrema impopularidade dos rohingyas no país e a força dos militares, Suu Kyi não tem grande margem de manobra. Para já, nem Buda convence os budistas.
Artigo publicado na VISÃO 1280 de 14 de setembro