Fundador do movimento tropicalista, com Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa, entre outros, com mais de 50 álbuns gravados, Gilberto Gil, 77 anos, é uma figura maior da música popular brasileira. Dia 19, está de volta a Portugal, para apresentar Ok Ok Ok, no Centro Cultural de Belém, Lisboa, na companhia de três dos seus oito filhos e com a participação especial de Roberta Sá. O disco foi composto após a recuperação de uma doença cardiorrenal, que o obrigou a internamentos mensais durante um longo período. Algumas canções, como Quatro Pedacinhos, relatam essa experiência hospitalar.
Gilberto Gil, que, durante a ditadura militar brasileira, foi preso e esteve exilado em Londres (juntamente com Caetano), teve um percurso político ativo, primeiro como vereador em Salvador da Bahia, nos anos 80, e depois, como ministro da Cultura (2003-2007) do primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sem nunca interromper a sua carreira musical. Depois de abandonar o cargo, tem evitado falar sobre política, mas à VISÃO não escondeu o seu descontentamento, com o rumo do planeta e, concretamente, com a visão “anacrónica” e “retrógrada” de Jair Balsonaro.
Teve um problema grave de saúde e esteve um longo tempo internado. De volta à “estrada”, como se tem sentido?
Bem, já voltei a uma vida normal, sem necessidade de tratamento. Há apenas uma manutenção que precisa de ser feita.
Apanhou um grande susto?
Sim, implicou com a atividade quotidiana da vida e causou desconforto em termos físicos. Senti uma ameaça à própria sobrevivência. Felizmente, a fase aguda já passou e estou vivendo a situação natural da velhice.
Com o avançar da idade, em termos musicais, perdem-se algumas coisas e ganham-se outras?
A vida como associação de transformações deve ser sempre traduzida como uma acumulação de ganhos, de aquisições, de conhecimento, entendimento, compreensão, visão. E assim tem acontecido comigo. A doença e a busca da cura, da melhor situação de viver, é sempre uma coisa transformadora. Houve mudanças vantajosas trazidas pela doença. Agora sinto que já estou em plena velhice.
A biópsia a que o seu coração foi sujeito levou-o à composição do tema Quatro Pedacinhos. Normalmente, os poetas falam do coração de forma metafórica, mas aqui, quando diz que lhe arrancaram quatro pedacinhos, também está a ser literal…
Há dois corações, o físico e o espiritual. A reflexão que se propõe na canção é sobre o que foi possível fazer com a ameaça física ao coração e a tradução espiritual feita em função disso. É a leitura poética de uma biópsia…
Mais à frente, faz uma canção dedicada à médica que o tratou. É extraordinária a capacidade que há na música brasileira de fazer música sobre qualquer assunto… Não há episódio que não possa resultar numa canção?
Acho que essa capacidade é comum a vários escritores de canções, também acontece em Portugal ou nos EUA. No Brasil, pelo número e pela variedade grande de autores, talvez isso seja ainda mais evidente.
Outro exemplo dessa capacidade é o tema Pela Internet 2, atualização da canção que tinha escrito em 1997, em que discorre sobre a tecnologia. Um tema arriscado, mas tratado de forma incrivelmente humorada e harmoniosa… Mantém-se sempre atualizado?
Já na primeira versão da canção, há 21 anos, o tratamento dos versos era divertido. Nesta também. A associação das novidades na internet, com os aplicativos, as novas formas de uso, acaba dando oportunidade a leituras divertidas. Esta segunda versão já nasceu desatualizada… Há uma impossibilidade de enumerar todas as novidades e, de lá para cá, já apareceu tanta coisa… A atualização desta música deveria ser diária.
Tem um repertório imenso de canções, construído ao longo de décadas. Como faz para não se repetir?
Isso fica por conta da própria condição de viver. A vida é uma sucessão permanente de questões transformadoras. O não se repetir, para um artista, está sujeito à própria vida. Hoje somos a mesma pessoa que antes, mas ao mesmo tempo já não somos. A criatividade do artista nasce nesse paradoxo. O mesmo compromisso com a sua obra anterior, mas lançado avante na vida.
Contudo, tem de concorrer consigo próprio, porque o público espera sempre ouvir as canções mais antigas. Como lida com isso?
O trabalho de criação é feito para a satisfação própria do artista. A primeira pessoa no público é o próprio autor. O resto vem depois. O grande público tem de se sujeitar aos caprichos do artista e de se subordinar ao seu discurso. O atendimento ao público em termos de expectativa de repetição é parcial… Não pode ser total senão perde-se a capacidade de criação renovada.
Então, como vai equilibrar os concertos de Portugal entre novos e velhos temas?
O repertório vai ser baseado no meu novo disco Ok Ok Ok, com cerca de dez canções. As dez canções restantes são de momentos variados do meu percurso. Metade novo, metade velho.
E quem o acompanha nesta tournée?
Uma banda formada por nove músicos, incluindo Domenico Lancellotti e os meus três filhos. Além da Roberta Sá, que participa em dois ou três temas…
Deve dar um prazer muito especial trabalhar e viajar em família…
Sim, eles vão estar os três comigo: Nara (vocalista), a minha primogénita, Bem (guitarra) e José (percussão e bateria). Testemunhei o desabrochar deles como músicos e intérpretes. Estarem no palco comigo, de alguma forma, prolonga o meu esforço na sua educação. É continuar o trabalho de prospeção das coisas da vida, da música, da canção, da poesia; as ideias sobre o homem e o seu entorno. É muito interessante ver isso acontecer numa idade em que eles já não são as crianças cuidadas e protegidas pelo pai, mas parceiros, irmãos, colegas de trabalho.
Curiosamente, o Caetano Veloso também anda em digressão com um espetáculo em que participam os seus três filhos. E o Moreno Veloso e o Bem Gil têm trabalhado juntos. A sua amizade com o Caetano já se perpetua para a geração seguinte?
É verdade, eles já fizeram uma temporada de concertos e estão a gravar. Também a amizade com o Caetano se transporta do passado para o presente em direção ao futuro. É muito estimulante que os nossos filhos partilhem afinidades musicais, assim como eu e o Caetano temos feito ao longo da vida.
Neste seu novo álbum, com produção do seu filho Bem, também conta com a participação de um outro velho amigo, João Donato. Como surge aqui esta canção?
Na verdade, começámos a fazer esta canção há 20 anos. Deixámos umas ideias gravadas numa cassete. Recentemente, a cassete foi recuperada por um pesquisador, no acervo do João Donato, e ele deu-me de presente. Então complementei a canção com novos versos e gravei-a. O João Donato é um parceiro de longa data, escrevemos cerca de 15 temas juntos. Neste show apresento a primeira canção que fizemos em parceria, Lugar Comum, e a última, Esta Coisa Bonitinha.
No tema de abertura do disco, Ok Ok Ok, dá a entender que não gosta muito de falar de política. Mas, inevitavelmente, tenho de lhe perguntar, parafraseando a letra da sua própria canção, qual a sua opinião, “um papo reto” sobre o que pensa e como interpreta “a tal, a vil situação”?
Vivemos um período da civilização humana bastante confuso e conturbado, possivelmente por causa da quantidade; estamos a lidar com sete mil milhões de pessoas, num sistema permanentemente interconectado. Tudo isso causa grandes dificuldades para obter unidades conceptuais políticas e económicas. É difícil estabelecer padrões mínimos de convívio satisfatório. Então, a economia e a política ficam conturbadas… Mesmo questões clássicas, como a resolução de conflitos, que antes estava entregue à guerra. Hoje em dia, estenderam-se tanto, que para os solucionarmos temos de ir além da guerra. Há novos tipos de guerra, que são a formação permanente de conflito. Tudo isto estabelece muito atrito. Há sempre um esboço de governo mundial que nunca se consolida porque os conflitos entre as nações vão prevalecendo. Isso é fruto de negatividades e do egocentrismo de determinadas personalidades. A situação é vil, crescentemente confusa.
E no Brasil, como vê a situação?
O Presidente eleito no Brasil é adepto de uma visão anacrónica da sociedade e do mundo. Tem, em torno dele, pensadores com um olhar retrógrado para a sociedade. Não acreditam na Ciência, nas descobertas, nas advertências que a sociedade vai fazendo em relação ao meio ambiente. Admitem até que a Terra pode ser plana, negando a acumulação do conhecimento humano que vem desde os gregos, de Copérnico, de Einstein… Querem negar tudo. São contra a progressão humana.
Encontra esperança para o Brasil?
Acredito que este grupo será substituído por um outro menos aderente a uma lógica negacionista.
Julga que as revelações do processo Vaza Jato podem acelerar essa substituição? O que acha que pode acontecer com o ex-Presidente Lula?
Espero que a instância judicial brasileira acabe relevando a pena que foi dada ao Lula, concedendo-lhe os benefícios que a progressão das penas têm para os outros presos. Que ele volte para casa e seja restabelecida a sua dimensão política. O benefício moralizador da Lava Jato só será configurado plenamente se houver um processo de regulação mais firme das relações entre o mundo privado e o mundo público. Se as questões sobre os lobbies empresariais nas casas legislativas se tornarem mais claras, mais públicas e legisladas. Senão, fica apenas uma cruzada moralizadora de alguns cavalheiros, lutando em nome do bem, sem que seja esclarecido o que é esse “bem”. Porque não são nada claras as relações entre esse “bem” e o “mal”, dentro das regras políticas e jurídicas. Que levem isto adiante até às últimas consequências.
Teve uma experiência política ativa, como ministro da Cultura do governo de Lula, mas diz sempre que não quer voltar. Arrependeu-se?
Não tenho qualquer arrependimento. Tudo o que fui chamado a fazer consegui em determinada medida. Os seis anos do nosso ministério, e um período de continuação, tiveram êxito, contemplaram perspetivas novas das populações brasileiras, dos vários Brasis, a inovação da cultura e a relação com as novas tecnologias, os saberes, os conhecimentos tradicionais dos ajuntamentos indígenas, dos descendentes dos escravos africanos… Tudo isso foi trabalho realizado, de que não temos nada que nos arrepender. Contudo, não tenho qualquer pretensão em regressar a uma atividade política ativa. Não acho que possa vir a ter uma participação relevante.
Voltando à música… Compõe constantemente ou apenas quando tem um disco para finalizar?
Antigamente, era uma produção constante, independentemente de uma tarefa específica para um disco ou de alguma solicitação de um outro artista. Compunha compulsivamente, nos momentos de ócio, de lazer… A composição era para onde convergiam todos os fluxos de interesse da vida, no sentido de interpretá-la, descrevê-la… Refletir sobre o que se passava em mim mesmo e ao meu redor. Aos poucos, essa volúpia foi assentando. Hoje em dia, isso só me acontece em casos muitos especiais, como no último disco, em que a doença e a busca da cura, a ameaça da morte, causaram o retorno dessa volúpia que resultou na produção dessas quase 5 canções.