Recebido o Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, pela segunda vez, das mãos do Presidente da República, a autora de Sibila já está noutra. «Os prémios, as coisas gloriosas, dão-me acessos de mau humor, tiram-me a capacidade de protestar, e eu adoro protestar. Todo o prémio tem um resíduo de compaixão. Quando se premeia alguém, isso não acontece pelo seu valor mas pela má consciência, pela incúria da sociedade por esse valor», exclama.
A passagem do tempo não azedou Agustina, porém, nem adamou. Fê-la, pelo contrário, mais lúcida, mais curiosa, mais depurada, mais desprendida, mais acutilante, mais irresistível.
Isso é cultivado por si?
É, e o resultado agrada-me, confesso. Sobretudo quando as pessoas me reconhecem e me falam na rua… Essa situação sucedeu, no entanto, gradualmente, não de repente, não houve um acontecimento que a desencadeasse. Por outro lado, o que ajuda, não me levo a sério a mim mesma. Nunca levei. De tal maneira que entrei na vida literária como no séc. XIX se dizia que um homem devia entrar na sociedade: com um duelo.
Um duelo?!
Exactamente, para se ser logo notado. Quando escrevi o meu segundo romance, Os Super-Homens, um crítico, o Jaime Brasil, que havia gostado muito do primeiro, O Mundo Fechado, ficou desiludido e deu-me uma tareia. Travámos uma correspondência intensa, a insultar-nos, e publiquei, inclusive, dois opúsculos contra ele. Ele ficou tão desgostoso comigo que deixou de fazer crítica. Depois foi para Lisboa como chefe da delegação do Primeiro de Janeiro.
Jornal de que, mais tarde, a Agustina se tomou directora…
Aceitei por causa disso…
Para se vingar?
Para pôr um ponto final na historia. Foi bonito, não foi? Um dia escrevi um artigo a dar-lhe razão, o meu livro não era de facto grande coisa.
Teve um ataque de modéstia?
Tive, o que foi terrível porque ele morreu logo a seguir.
Matou-o?
Não! [risos] Não se deve é ser condescendente com os outros. Enquanto disserem que sou perversa, é porque estou a dar vida às pessoas, está tudo bem. Mas se disserem que virei santa, então, é preciso ter cuidado pois elas podem cair como tordos.
De qualquer modo, tornou-se mais contida…
Nem por isso!
Não disse sequer mal do Saramago quando ele ganhou o Nobel…
Não disse nem diria.
Mas pensou…?
Não, é um contemporâneo e eu tenho um respeito absoluto pelos meus contemporâneos. Até nascemos ambos no mesmo ano…
Ele incluiu-a, aliás, entre a meia dúzia dos escritores portugueses que mereciam o galardão.
Foi por prudência…
Ambicionava recebê-lo?
Houve uma altura em que eu gostaria muito de ganhar o Nobel, mas para dançar com o Rei…
O quê?!
Isso mesmo: para dançar com o Rei.
A cerimónia mete baile?
Mete sim senhor. A escritora norte-americana Pearl Buck valsou com ele no palácio de Oslo.
Também queria uma valsa para si?
Claro, não ia ser um chá-chá-chá, nem um merengue, nem uma lambada. Imagina o Rei a dançar uma lambada comigo?
Sei lá, de si espera-se tudo…
Não exagere!
Os 150 mil contos [€750 mil] do prémio não lhe davam mais gozo?
Faziam jeito, sim, mas para quê? Não preciso deles… Viajo para onde quero, em boas condições, tenho os livros que quero para ler, a independência de que necessito… O gastar esse dinheiro todo obrigava-me a desviar da escrita, a distrair-me, o que seria desastroso.
O Saramago queixou-se-me bastante disso…
O ter multo dinheiro é prejudicial, e o ter pouco também, ainda mais [risos]. Às vezes, quando penso nas pessoas que possuem grandes fortunas, pergunto-me: o que é que elas fazem, afinal, de interessante? Por outro lado, tornou-se perigosissimo ter muito dinheiro…
Por causa dos raptos?
Sim, e dos sequestros, e das chantagens, e das pedinchas… As grandes somas, as grandes quantias foram de tal maneira facilitadas, pelas televisões, à imaginação popular que 150 mil contos de um Nobel não dizem grande coisa às multidões, habituadas que estão a ouvir falar em milhões, milhões para uma estrada, milhões para uma ponte, milhões para um desfalque…
Está tudo desvalorizado!
Pois está. O Vitorino Nemésio defendia que os prémios literários deviam ter um grande valor pecuniário porque isso impunha o escritor junto do público, ajudava-o a ser respeitado. Eu acho que não. Não há relação nenhuma entre o valor do escritor e o valor do que ele ganha.
Mas, hoje, o que conta não é a qualidade do que se publica, é a quantidade do que se vende…
É verdade, sim. O escritor tomou-se num objecto a explorar, cada vez mais.
Foi um erro querer fazer dos livros best-sellers…
Pois foi. Com a pintura aconteceu o mesmo. A Vieira da Silva dizia-me: “Pintores como eu há milhares em Paris, só que reuniram-se condições especiais que permitiram o meu lançamento.”
Ela tinha essa lucidez?
Tinha. Percebia perfeitamente o seu fenómeno. O escritor, essa é a sua vantagem, não precisa de muito para se afirmar.
Quem a ouvir pensa que é uma enjoada do vil metal…
Pelo contrário, gosto muito dele…
De o manusear, de o amealhar?
De o gastar, de comprar coisas boas, caras. Adoro tudo o que tem qualidade!
É assim tão vaidosa?
Como milhões de mulheres. Mas ultimamente tornei-me económica…
Por causa da crise?
Não, porque não encontro nada que me agrade. Não tenho, e sou muito bem paga, onde gastar o dinheiro.
Arranjou esta casa em Lisboa
Para escapar à vida doméstica que tinha no Porto, envolvia-me excessivamente…
Fartou-se do marido, da família…?
Não, de maneira nenhuma! [risos] Refiro-me às coisas da casa… Dantes as burguesas de posses sofriam de uma doença que se chamava a surmenage. Eu não sabia o que era até que, no ano passado, gozei umas férias sozinha, numas termas, e foi uma coisa fabulosa, o lado solitário de mim agrada-me muito. A surmenage consistia nisso, na cura do quotidiano, altamente benéfica e apaziguadora. Este ano não o fiz e tenho pena.
Este ano preferiu a Lapa…?
Mas eu sempre gostei muito de Lisboa! Lisboa é a cidade, a capital, um amigo meu diz que fora dela só há província.
E o seu mito de nortenha? A Agustina, o Manoel de Oliveira e o Eugénio de Andrade são, aliás, o galheteiro de luxo do Porto…
Ora, passamos lá, tirando o Eugénio, tão pouco tempo! O Manoel de Oliveira, então, anda sempre fora… Somos, sim, os três, o que é muito importante, companheiros do mesmo caminho. O que significa muita coisa… Memórias, vivências, circunstâncias, espaços, viagens, percursos…
A Agustina tem sido uma «sempre em pé»: passam as décadas, os regimes, as revoluções, as gerações e aguenta-se na crista da onda…
Porque gosto de estar metida nas coisas, na política, na cultura, na comunicação social… Apoiei o general Eanes (tenho uma grande estima por ele e pela mulher), o prof. Freitas do Amaral, estive na Alta Autoridade para a Comunicação Social, no Teatro Nacional [d. Maria II], fui directora de um jornal…
Tudo por atracção pelo poder?
Não, por curiosidade, pela extrema curiosidade de que sou dotada. A curiosidade leva-nos longe, é o princípio de todas as renovações. Gosto das pessoas porque sou curiosa delas. Ainda hoje, estava à espera do comboio para Lisboa, que já me é tão familiar, temos quase uma relação física, quando surgiu uma mulher e eu convidei-a a sentar-se no banco, a meu lado. Sentou-se e falou todo o tempo sobre si, necessitava de alguém que a ouvisse. Essa capacidade da pequena vagabundagem que as mulheres têm, a partir de certa altura, normalmente depois de criarem os filhos, de serem viúvas, de estarem reformadas, é verdadeiramente deliciosa.
Elas têm mais disponibilidade que os homens…?
Têm. Os homens estão, de uma maneira geral, preocupados com objectivos concretos, até porque se os não tiverem sentem-se mal. As mulheres não, sabem estar consigo próprias, muito melhor do que os homens.
Por um fenómeno cultural?
Não, por um fenómeno maternal.
O facto de lerem uma função maternal tranquiliza-as, liberta-as, apesar das discriminações que pesam sobre elas. Interiormente são mais livres do que os homens.
Era capaz de convidar um homem para se sentar num banco, a seu lado?
Se fosse um estudante que me tivesse reconhecido, sim; senão, não. Tinha de haver um motivo, uma referência tranquilizante, é necessário obedecer às leis da cidade…
Como vê o boom dos bestsellers que domina a ficção?
É consequência da época, não tem novidade. A Florbela Espanca, por exemplo, foi, no seu tempo, um fenómeno do género. Tinha um público numerosíssimo de mulheres desencantadas, sofredoras -ainda hoje tem-, que a liam maravilhadas. O Camilo, por sua vez, vendia imenso, vivia, aliás, e muito bem, da escrita. Não se deve ter pena dele sob esse aspecto. Escrevia sobretudo para mulheres… É o grande romancista português, é espantoso, é genial. O ser um jogador impedia-o de se movimentar muito…
O jogo sedentariza as pessoas?
Sim.
Isso é uma qualidade?
É pacificador, pacificador até dos outros vícios…
Uma forma de erotismo?
Exacto.
A Agustina já jogou?
Não, não sinto a mínima atracção… Passo com toda a indiferença por aquelas máquinas que há nos casinos.
Não tem vícios?
Não, só o de escrever.
Ainda se arrisca a ser canonizada, como a Irmã Lúcia que, aliás, também gosta de escrever…
Preferia sê-lo como a Santa Teresa de Jesus.
Já alguma vez se imaginou num convento?
Já, como uma abadessa, uma dessas abadessas dos tempos de D. Sebastião e dos Filipes. Nessa altura, e por terem morrido milhares de jovens em Alcácer-Quibir, a fina-flor da época, ficaram muitas meninas por casar, que se acolheram aos conventos. Usavam arminhos, peles valiosas, perfumes, jóias debaixo dos hábitos, era um luxo, uma maneira de se consolarem da sua solteiria…
Ah, queria ser abadessa, mas com todas as mordomias…
Claro! [Risos]
Bom, voltemos às jovens da literatura light…
São mulheres que aproveitam o talento que têm de comunicar e o conhecimento que possuem dos seus meios sociais. Como há gerações iguais a elas e às personagens que criam, vendem bem. Em breve, no entanto, essas camadas de leitores passam e surgem outras que já não as entenderão.
São fenómenos de moda?
Penso que sim.
Lê-as?
Conheço-as muito mal.
E outros autores? Ainda lê?
Muitíssimo! O Ferreira de Castro dizia que até aos 35 anos lia-se, depois não. Ora eu penso que, depois, se lê cada vez mais. E se relê. O livro não me interessa nada como objecto.
Não é bibliófila?
Nada,nada!
Esta pimbalhice que nos cerca, na política, na cultura, nas relações, na vida, era-lhe previsível?
Não me surpreendeu. Depois de uma revolução cria-se quase sempre um estado idílico a que se seguem, como nos casamentos, períodos de desavenças, de separações…
Estamos no período da estalada?
Não, estamos num período pior, que é o de nos enganarmos uns aos outros.
A que se segue…?
O divórcio.
Não há risco de crime passional?
Não, o português não é muito dado a ele. É um povo doce…
O crime de Amarante, que é a sua terra e figura num livro seu, não teve lá muita doçura.
Ah, mas eu sinto muito orgulho pelo crime de Amarante! O carácter de um país conhece-se pela qualidade dos seus criminosos.
A senhora é fresca…!
Pois sou!
Parece estar numa fase muito jovial da sua vida…
Estou numa fase de juventude precoce! [risos] Aceito tudo de uma maneira natural… Dura-se até a natureza o determinar, não é? Como é ela que tem a última palavra, não deixo que a minha razão interfira. Estou contente por me acontecer isso, por continuar a ter gosto pela escrita, por continuar a gostar do que escrevo, por continuar com as minhas faculdades intactas. Quando estava no D. Maria II, disse uma vez, o que causou certa graça, que o cérebro humano não funcionava na sua totalidade, que precisava de ser estimulado…
Também foi para se vingar de algum crítico que aceitou ser directora do Nacional?
Não. Pertencia à Alta Autoridade para a Comunicação Social, vinha do Porto de comboio e ia de avião. A certa altura começou a tomar-se difícil apanhar táxi, naquele local, para o aeroporto. Então, convidaram-me para o teatro e eu fui. [risos] Pequenas causas, grandes efeitos…
Também lhes dá, às causas e aos efeitos, uns valentes empurrões…
Não muitos.
Ora, já a ouvi fazer discursos partidários, em campanhas, com grande volúpia…
Era o meu lado poético a funcionar. Tive oportunidade de entrar na política mas não aceitei, não era pela porta nobre…
E qual era a porta nobre?
Ser um primeiro-ministro, ser um tirano… uma Catarina da Rússia. [risos]
Gostava de ser Catarina da Rússia?!
Gostava. É um modelo para mim. Todos os tesouros artísticos que existem no Hermitage, foi ela que os levou para lá, que os comprou aos franceses. Só assim é que a política vale a pena, de outro modo não. Ser deputado é muito pouco.
A escrita dá-lhe poder…
Pois dá, até porque escrevo bastante bem. Atingi um desprendimento, um domínio muito grandes.
Há quem a acuse de ser megalómana, de não rever o que faz, de trocar os nomes às personagens…
Isso acontece por distracção.
Por distracção?
Tenho o direito de ser distraída…
Foi por distracção que o Santana Lopes lhe ofereceu o D. Maria?
Quem me convidou não foi ele, foi Cavaco Silva. Gostei muito, aliás, de lá ter estado, apesar dos odiozinhos, das invejas do meio. Tive a sorte de se encontrar em cena o Passa Por Mim no Rossio, pelo que foram dois anos triunfais. Não fazia nada, era só ganhar dinheiro. Foi uma benção para mim… O pior eram os outros actores que não podiam representar e queriam fazê-lo.
Ainda escreve peças?
Escrevi há tempos duas, uma por sinal muito boa, a propósito do centenário do Garrett…
Claro que não foram representadas…
Claro!
O cinema, é mais interessante?
Ah, sim, gosto imenso de cinema. Mas no cinema via-me, sobretudo, como realizadora. Tinha, porém, que nascer, que viver no seu meio. Penso até que, para o público, era mais interessante que eu tivesse uma maior participação nas adaptações dos meus livros… Mas o Manoel de Oliveira não deixa, chega a ser intransigente.
Trata-a mal?
Que ideia, somos muitos corteses!
E nos jornais, não vai reaparecer? A Agustina pela-se por meter a sua colherada na actualidade…
Para já, não. Passou um vento qualquer n’0 Independente, onde colaborava, uma espécie de siroco que me afastou dele. Agora estou a avançar no terceiro volume da trilogia O Princípio da Incerteza, que se chama Os Espaços em Branco. E quero muito escrever sobre o amor e a paz, coisas que não se ensinam entre nós. Ensina-se tudo, o sexo e as maneiras de o fazer estão nos compêndios escolares, mas o amor e a paz não. Penso que a guerra é um amor frustrado do ser humano, tudo parte daí, da falta dele. Não sei, porém, se desocultar isso não será tirar-lhe o mistério… A Madame de Maintenom dizia que o medo de morrer era-lhe superado pela curiosidade em relação àquilo que pudesse encontrar depois da morte.
Também sente essa curiosidade?
Sim, também sinto.