A minha Mãe deixou de escrever em 2007, na altura em que teve um AVC. Passou por uma fase muito difícil, parecia que todas as funções do seu corpo entravam em convulsão, e já não era o pensamento que dominava o seu ritmo, mas qualquer coisa que está para além do pensamento, como um raio que a tivesse atingido, iluminando-lhe um estado de graça.
Tudo agora se encaixa numa nova relação com a vida, que deixou de ser em função dos outros e de um destino, mas de si própria, um ser único que pertence à Grande Criação. A minha Mãe encontrou um novo equilíbrio, e está recolhida numa bela velhice.
Tem todo o direito a vivê-la em silêncio, com os seus mistérios e os seus segredos. Não precisa de escrever nem de falar para eu receber dela aquilo que se deve legar aos filhos, que é o sentido da vida que se viveu, e se transmite numa inspiração.
Hoje, Agustina senta no colo o bisneto Chiaro, abraça-o, e ri-se das suas brincadeiras. E já sabe que quando lá chega o bisneto mais velho, o Alberto, e a cumprimenta a correr, é para ir subir à magnólia, que é o seu navio pirata. Escolhe sempre a roupa que quer vestir, e no passeio matinal olha demoradamente as magnólias do jardim, e enxota a gata que a acompanha e se enrola nos seus pés; impacienta-se com os livros em cima da mesa; bebe todos os dias uma taça de champanhe, celebrando as pequenas coisas. E a serenidade lúcida que transparece quase assusta.
Um dia, estava eu a acompanhar minha Mãe no hospital, que recuperava de uma fractura da tíbia, quando ela começa a falar claramente, com espanto meu (tinha perdido a fala com o AVC), e conta-me uma história de família o casamento do tio António, na Póvoa, com uma mulher muito bonita, e muito leviana.
Eram tantas as peripécias, que a certa altura perguntei-lhe se queria que eu escrevesse essa história! E a Mãe respondeu-me: “Não é preciso. Eu já escrevi tudo.” Quando no início os médicos avaliavam os sintomas, interpretavam os inúmeros exames. Agustina comentou: “Os médicos não percebem nada. Julgam que vou morrer, mas enganam-se. Só eu sei.” Quando passeio pelos lugares de infância de minha Mãe, pelas casas, pelos caminhos, e estou só, sinto como que uma poeira leve que se levanta nalguns recantos, com uma estranha presença de vida, como se ela continuasse a passar ali.
“Voltamos sempre ao local de partida.” Assim será.