Sim, eu compreendo. Está a ser desavergonhadamente bombardeado de estímulos sobre a chegada do Episódio VII: O Despertar da Força. Já passou pela fase de dizer “eu não ligo nenhuma a essa treta do Star Wars”, e agora teme genuinamente ficar para trás num comboio onde parece viajar, praticamente, toda a Humanidade. Porque tem amigos que adoram, amigos cujo gosto estima e respeita, e precisa de perceber o que é que tanta gente vê nesta saga espacial. Não desespere. Nada de pânico. Vamos tentar ajudá-lo o melhor que conseguirmos.
Antes de mais: é muito difícil para um ser humano adulto que nunca ligou a Star Wars (ou, como se dizia no meu tempo, Guerra das Estrelas) atingir, de repente, a intensidade de paixão que têm fãs de sempre, como este que se assina. Não há nada de errado nisso. Tem tudo a ver com contextos e timings.
Veja-se o caso deste seu criado. Corria o ano de 1981 e O Império Contra-Ataca (também conhecido como o Episódio V, apesar de ter sido o segundo a ser apresentado ao mundo; mais sobre isto adiante) estava prestes a chegar às salas. Para ganhar balanço para o novo filme, o primeiro volume (que apesar de primeiro, é o Episódio IV; mais sobre isto adiante), produzido em 1977, é reposto nas salas portuguesas.
A grande ficção científica era rara nos cinemas, naquela altura. Era mais comum na televisão – para a minha geração, o espaço e as naves monumentais estavam confinadas a pequenas caixas na sala (na minha casa a cores; na casa das minhas avós, a preto e branco). Daí que a mera ideia de ver uma saga espacial num ecrã tão grande como o do Cinema Império, em Lisboa, fosse, ainda antes de entrarmos na sala, uma experiência equiparável a partir, de facto, numa nave. Cinemas como o Império eram autênticos Cabos Canaverais de onde se levantava voo para outros mundos, numa experiência que chegava a ser mais intensa do que uma ida atual ao IMAX em 3D.
Ponha-se na pele de um jovem Marklito em 1981, sentado no balcão do Império, com um ecrã do tamanho da vida à frente dele. E pense nas parcas propostas de ficção científica e cinema fantástico da altura. É evidente que o dia em que vi Guerra das Estrelas (mais tarde conhecido como Uma Nova Esperança) mudou a minha vida. Em parte porque Guerra das Estrelas é um pedaço de entretenimento extraordinário em qualquer era; e em parte porque – com 10 anos de idade e nenhuma experiência de aventuras espaciais no cinema, o total e completo esmagamento, só nos primeiros segundos em que o tema imortal de John Williams explode no sistema sonoro do cinema e o logótipo amarelo Star Wars enche a tela – isso marca uma vida.
Portanto, cresci com Star Wars. Para mim é mais do que uma série de filmes – é uma tradição, uma evidência, uma companhia amiga e familiar. Quando eu tinha 10 anos, este universo era um parceiro de brincadeiras; quando eu tinha 30 era uma lição de narrativa, realização, montagem e efeitos especiais; aos 44 é uma combinação das duas coisas. Pelos olhos maravilhados do meu filho, esta saga volta a ser puro encanto lúdico; pelos meus olhos, míopes e cinéfilos, continua a ser uma lição fascinante de construção de universos.
Apesar das prequelas. Mais sobre isto adiante.
O que é, afinal, a saga ‘Star Wars’?
As pessoas não-geeks que têm algum receio de entrar neste universo, temendo que seja uma experiência tão maciça como O Senhor dos Anéis ou tão complexa como A Guerra dos Tronos, desenganem-se: é um universo vasto e rico, mas, na verdade, convidativo e facílimo de compreender, não requerendo um mapa dos vários mundos e relações e sociedades; além disso, caminha-se muito menos do que n’O Senhor dos Anéis – voa-se bastante em toda a espécie de naves, dispara-se muito, corre-se, grita-se e dizem-se piadas com frequência. Star Wars tem as doses certas de pathos, de dramatismo épico, e de gozo puro. A melhor maneira de descrever esta saga de heróis, vilões, opressão, rebeldia e redenção é talvez esta: Star Wars é, no fundo, o que Flash Gordon seria se William Shakespeare o tivesse inventado.
Qual a ordem ideal para visionar os filmes Da saga?
Não confie em pessoas que, de forma aborrecida, lhe digam que a ordem lógica é começar no Episódio I e acabar no VI (ou no VII, se, pela altura que estiverem a ler estas linhas, ele já tiver estreado). A ordem ideal – na minha opinião – é:
IV – V – VI – I – II – III
E não é só porque, se começarem pelo Episódio I, são capazes de perder a vontade de ver o resto, já que a trilogia de prequelas é inferior à que começou tudo entre 1977 e 1983; para quem não conhece a saga, a razão pela qual se aconselha vivamente começar pelos tomos IV, V e VI é porque a trilogia original com que os fãs da minha geração cresceram contém uma daquelas revelações bombásticas de deixar boquiaberto o mais frio espectador, revelação essa cuja origem é explicada com detalhe nos episódios I, II e III, retirando todo o efeito-surpresa aos excelentes IV, V e VI. É provável que, dada a omnipresença dessa revelação bombástica na atual cultura popular, um espectador virgem no universo Star Wars já a conheça; mas vamos acreditar que há potenciais novos fãs desta saga que não fazem a mais pequena ideia do que se passa nesta história: comecem pelos episódios IV-V-VI. Não se vão arrepender.
Recentemente, peritos da grande comunidade internacional de fãs de Star Wars sugeriram uma outra ordem de visionamento que tem a sua laracha. É a Star Wars Machete Order, que arranca com o Episódio IV – Uma Nova Esperança, segue para o Episódio V – O Império Contra-Ataca, deixa o espectador em suspenso com o terrível, terrível, final em aberto desse Episódio V (a sério, apreciem hoje em dia o tristíssimo final desse volume, envolvendo uma chatice magna que acontece a uma das personagens mais queridas, o alegre e heróico contrabandista Han Solo e imaginem o estado de nervos em que ficámos em 1981, quando fomos apanhados de surpresa por esse final e ficámos doentes), salta para o Episódio II – Ataque dos Clones, segue para o Episódio III – A Vingança dos Sith e regressa atrás, ao Episódio VI – O Regresso de Jedi, para terminar a saga. Pergunta o leitor: “Então e o Episódio I?”. Ora bem: digamos que muitos fãs devotos de Star Wars não vão à bola com esse tomo e alegremente o dispensam da saga, por razões explicadas mais adiante. Não este fã que se assina. Embora reconheça que Episódio I está crivado de defeitos – alguns chocantes – aprendi, com o tempo, a abraçá-lo e a aceitá-lo. Porque apesar de conter muitas coisas que correm mal, inclui uma ou outra que corre mesmo muito bem.
O que se passa nos Episódios IV a VI?
Aquilo que ditou boa parte das regras de toda a ficção científica que se fez depois. Acompanhamos a luta de um grupo de rebeldes, cujo núcleo duro é composto por Luke Skywalker (Mark Hamill), um rapaz pacato que, antes de conhecer a fundo as revelações que lhe são feitas pelo seu velho e reclusivo vizinho Obi-Wan Kenobi (Alec Guinness) não imagina a importância quase messiânica que irá ter no combate ao Mal; Leia Organa (Carrie Fisher), uma princesa rebelde corajosa; Han Solo (Harrison Ford), um contrabandista maroto e fala-barato rápido no gatilho e no sarcasmo; Chewbacca (Peter Mayhew), um peludo guerreiro da raça Wookie e do planeta Kashyyyk que copilota com o seu velho amigo Han a lata velha mas cheia de estilo que dá pelo nome de Millennium Falcon (e que é uma das naves mais adoráveis da história da cultura popular); e dois robots carismáticos, o pequeno R2D2 (Kenny Baker) e o muito britânico e diplomata C3PO (Anthony Daniels). Este bando protagonizará a luta contra o regime opressivo do Imperador Palpatine (Ian McDiarmid) e do seu mais-que-capanga Darth Vader (Dave Prowse dá-lhe corpo; James Earl Jones dá-lhe a voz quando se percebeu que a voz nasalada e de classe operária britânica de Prowse retirava força à crueldade insana de Vader). A aventura, dominada por essa magia invisível que alguns místicos guerreiros jedis usam para o Bem e que o Império usa para o Mal chamada a Força, corre mundos, e várias vitórias e derrotas vão sendo acumuladas até à vitória final.
A magia destes três volumes concebidos por George Lucas entre 77 e 83 está no equilíbrio perfeito entre aquilo que é levado a sério – a construção metódica e detalhada de uma mitologia, de mundos, de sociedades – e um gozo total e completo, muito devedor dos velhos filmes de ficção científica de série B dos anos 50, que mantém o espírito de Star Wars leve, divertido e apelativo até ao vício.
Que embirração é essa com os Episódios I a III?
A minha teoria é que fã que é fã acaba por perdoar os pecados das prequelas. Veja-se como foi conturbada a minha relação com o Episódio I – A Ameaça Fantasma: quando esse filme estreou, em 1999, fãs como eu estavam com um dramático jejum de novos capítulos de Star Wars desde 1983. Recordo-me da minha alegria emocionada quando, tantos anos depois, o tema de John Williams voltou a acompanhar o logótipo amarelo no grande ecrã de uma sala de cinema – uma felicidade infantil (que, sem dúvida, eu e outros como eu sentiremos quando isso voltar a acontecer na estreia de Episódio VII – O Despertar da Força) estendida pelas duas horas seguintes. Quando acabei de ver o Episódio I, num serão de 1999, estava numa espécie de anestesia deliciada. Lentamente, a adrenalina foi-se desvanecendo nas horas seguintes. No dia seguinte, as falhas desse tomo inaugural estavam à mostra: o filme não era assim tão bom. George Lucas dispensara os velhos e talentosos colaboradores da primeira trilogia – entre eles o talentosíssimo argumentista Lawrence Kasdan (cuja escrita pode ser apreciada em obras que vão desde Os Amigos de Alex até Salteadores da Arca Perdida) e abraçou escrita e realização a solo, com a mesma obstinação contra todas as marés que o levou – apesar dos gritos revoltados dos fãs – a modificar e aperfeiçoar os efeitos especiais dos velhos filmes nas “Edições Especiais” que se tornaram as definitivas. Faltou quem lhe explicasse que não é possível, num mesmo filme, abordar a saga com sisudez quase burocrática (toda a conversa sobre as rotas de comércio do Episódio I roça o impenetrável para alguns adultos, quanto mais para a petizada) e, ao mesmo tempo, colocar lá no meio uma personagem tão tonta e inexplicavelmente infantil como o embaixador da raça Gungan, Jar Jar Binks (Ahmed Best).
As coisas melhoram bastante nos volumes II e III, em que acompanhamos um jovial mas sábio Obi-Wan Kenobi (Ewan McGregor) e o seu aprendiz Anakin Skywalker (Hayden Christensen) numa luta contra personagens deliciosamente malignas (o Conde Dooku de Christopher Lee é um favorito!) que acaba por ser uma descida às trevas: por um lado, pela tomada de poder do terrível Imperador Palpatine; por outro, pelo trágico destino de Anakin, vivendo uma conturbada história de amor com a Princesa Padmé Amidala (Natalie Portman). O que falta em eficácia e espírito romântico de aventura presentes nos episódios IV-VI, ganha-se em minuciosa construção de mundos. Não é bem a velha trilogia, mas aprende-se a gostar, quando apreciada no contexto global da saga.
O que se passa com Yoda?
Yoda é o Jedi supremo, o mestre dos mestres. Para além disso, é uma marioneta nos episódios IV a VI e uma sofisticada criatura em animação digital nos episódios I a III. Mais uma razão para ver primeiro a trilogia velhinha, quando as criaturas ainda eram criadas em látex e os atores conseguiam vê-las nas rodagens. O pequeno filho de uma amiga, que viu agora a saga pela ordem numérica, começou a gritar, ao chegar ao Episódio V, que aquele não era o Yoda verdadeiro, era um boneco impostor a fazer-se passar por ele!
A sério, vejam primeiro IV-V-VI.
E aqueles ursinhos fofos do Episódio VI – O Regresso de Jedi?
Por amor de Deus, não são ursinhos. São ewoks. De uma vez por todas: são ewoks!
O universo todo são seis – quase sete – filmes?
Não, e parte do gozo que se retira de Star Wars, depois de dominado o básico – os seis filmes – está nas expansões. O novo cânone ditado pela Disney é mais maneirinho que o anterior no número de comics, romances e videojogos que compõem o universo oficial (entre a recente colheita, permitam-me que aconselhe as novas séries de comics com o selo Marvel). Mas se não tiver tempo para tudo isso, o meu conselho é que tente encontrar umas horas valentes para encaixar as séries de animação A Guerra dos Clones entre os episódios II e III e Star Wars Rebels entre o III e o IV. A primeira é mais épica, a segunda é mais punk; ambas fazem preciosas contribuições para tornar este vasto universo vivo, detalhado, coerente. E na segunda temporada de Rebels começa a aparecer Darth Vader. Tão fixe!
(Peço desculpa pela linguagem indigna de tão prestigiada revista, mas é impossível evitar. Contar com Vader de novo vivo numa série, é, de facto, fixe.)
O que esperar do ‘Episódio VII’?
Uma das coisas mais apelativas de O Despertar da Força é o facto de não ser feito por George Lucas. Nada contra a mente brilhante que criou tudo isto; mas como se viu pelas prequelas, Star Wars estará, neste momento, mais bem entregue a um fã devoto e preocupado como J.J. Abrams (que, ainda por cima, é um dos mais imaginativos contadores de histórias de Hollywood – veja-se Lost e os dois recentes Star Trek) do que à visão mais fechada do seu criador. Como se não bastasse, Abrams foi buscar, para a escrita, o bom velho Lawrence Kasdan, homem mais interessado na dinâmica das relações humanas do que propriamente em rotas de comércio espacial, o que poderá significar que o Episódio VII recupera o precioso equilíbrio entre espetacularidade épica e humanidade terra a terra. Ver, no primeiro trailer, os breves segundos de Han Solo a dizer a Chewbacca “we’re home” tem mais encanto do que as duas horas de Episódio I. Harrison Ford volta, Mark “Luke” Hamill volta, Carrie “Leia” Fisher também. Há um stormtrooper revoltoso, Finn (John Boyega) e uma nova brava heroína, Rey (Daisy Ridley). E um vilão que é fã de Vader e promete continuar a obra deste, Kylo Ren (Adam Driver). E uma Primeira Ordem que prossegue a senda malévola do Império. E um novo robot esférico encantador de “olhar” fofo, BB-8. E, no fundo, não sabemos nada. O que, na era sem segredos da internet, é um milagre. Esperemos que se mantenha o segredo até dia 17 de dezembro: para um fã, é provável que, finalmente, o encanto das velhas idas ao Império, num tempo livre de spoilers, vá ser inteiramente recuperado.
Que a Força esteja connosco. E com eles que fizeram o filme, também. Sobretudo com eles.